sexta-feira, agosto 31, 2018

(DL) «O Senhor Brecht e o sucesso» de Gonçalo M. Tavares (2004)


O início não  é muito prometedor: Apesar de a sala estar praticamente vazia o senhor Brecht começou a contar as suas histórias.” E se elas são surpreendentes! Logo na primeira, «Um país agradável», temos a preguiça a apossar-se de quem nele habita, a tal ponto que não ´há quem se disponha a combater os sucessivos invasores, que vão chegando em sucessivas ocasiões até deixar aquele espaço densissimamente povoado, enquanto à volta passava a reinar o vazio. Razão para o novo presidente ordenar o sentido contrário: a invasão dos territórios adjacentes. Mas a característica inicial mantinha-se e ele viu-se sozinho quando avançou para lá das fronteiras. Temos, pois, um conto com preocupações evidentes a nível filosófico por cuidar de idiossincrasias coletivas com as suas inércias próprias, indiferente a qualquer voluntarismo de sentido contrário.
Essa lógica prossegue na história seguinte com um desempregado a perder sucessivamente uma mão, e depois outra em troca de novos empregos, que lhe garantissem o alimento dos filhos. Razão tão ponderosa justificativa da mesma passiva concordância mesmo quando lhe exigiram a cabeça para lhe atribuírem nova oportunidade. Há depois o pássaro atingido sucessivamente por balas, que lhe impossibilitavam o voo, instando-o a reciclar-se em cantor. Ou o homem mal-educado, que nunca tirava o chapéu nas ocasiões em que o deveria fazer e, por isso mesmo, condenado à guilhotina, só então se percebendo não ser aquele adorno a encimar-lhe a cabeça, mas era esta a ter o feitio daquele.
Há também o gato, que imitava tão bem o guinchar dos ratos, que os atraía enganadoramente para garantir refeição certa. Até ao dia em que o iludido foi um gato bem maior, que logo o mata e come, espantando-se com o tamanho do «rato», que caçara. Mais adiante aparece o caso de uma manicura a quem a alteração política do país garante novo emprego: a de amputadora de dedos aos prisioneiros.
O nonsense está presente na mulher gorda que decide perder peso, pedindo ao médico a amputação da perna ou a avaria na cadeira elétrica, que justificara a troca de funções: o carrasco sentava-se no assento e o prisioneiro movimentava a alavanca, recebendo nesse gesto a descarga mortal.
A relatividade dos conceitos surge na história onde, em vez de uvas, são diamantes a adornarem os cachos das vinhas, levando os donos à exasperação: eles que tanto ansiavam pelos frutos, só lhes cabia as malfadadas pedras brilhantes. Há também a livraria com cem mil exemplares à venda, todos do mesmo livro, e com os clientes a cirandarem entre as prateleiras indecisos quanto ao número do exemplar a comprar.  Ou o país onde nos céus imperou um colorido arco-íris durante um ano, razão para a exclamação de júbilo de quem, perante um céu enfim cinzento, o ajuizou extremamente bonito.
Num registo crítico surge o engano da agência de viagens, que fez aterrar os passageiros num país em guerra, não suscitando neles qualquer estranheza, porque logo se puderam tirar fotografias aos cadáveres espalhados pela rua.
Contadas cinquenta histórias, “o senhor Brecht olhou em redor. A sala estava cheia. As pessoas eram tantas que tapavam a porta. Como poderia agora sair dali?”

quinta-feira, agosto 30, 2018

(DIM) Entre a primeira alunagem e uma terra de nenhures


No meu Top-50 cinematográfico figuram dois títulos, que vêm a talhe de foice, a propósito da apresentação de um novo filme em Veneza. De facto, «First Man» de Damien Chazelle, levou os críticos a lembraram «2001, Odisseia no Espaço» e «Os Eleitos», que vejo e revejo regularmente, sempre com renovado prazer. E, no entanto, há o consenso em reconhecer que a obra agora conhecida não atinge a dimensão filosófica de um, nem épica do outro. A razão deve-se à personalidade introspetiva de Neil Armstrong, cujas feridas íntimas não obstaram a que se focasse no objetivo da sua missão, mas não deram ensejo aos argumentistas para irem além do registo que, enquanto pessoa, ele era. Daí que corresponda a papel talhado para que Ryan Gosling volte a ser tido em conta para os Óscares.
Porque, meio século passado, ainda tenho algo do miúdo, que passou a corresponder-se com a NASA, quando a Apollo 11 chegou à Lua, encararei com expetativa o dia em que me sentarei numa sala de cinema para aferir se os que já viram «First Man» enunciam como boas razões para o descobrir.
Enquanto isso não sucede atenho-me nas estreias que vão ocorrendo nos ecrãs lisboetas, ciente de estarmos naquela época do ano em que pouco sobra dos habituais pretextos para que os adolescentes gastem parte das mesadas em pipocas e coca-colas e se malcomportem nas salas escuras. Dos filmes estreados nesta quinta-feira valerá a pena a deslocação ao Ideal Paraíso para conhecer «Milla» de Valérie Massadian, sobre um casal jovem à descoberta do amor, sem distrações que os desfocalizem um do outro, mas perdendo pouco a pouco o discernimento entre o que é ou não realidade.

segunda-feira, agosto 27, 2018

(DL) «O Manuscrito de Deus» de Juan Ramon Biedma (2001)


Como o «Código da Vinci» data de 2003 não se revela verdadeira a suspeita de estarmos perante um  sucedâneo desse best seller, congeminado com óbvios fins comerciais. De facto o romance de Juan Ramon Biedma data de dois anos antes, muito embora também aqui exista uma organização milenar, guardiã de um livro subdividido em cinco partes, e incumbida de evitá-lo ver cair nas mãos dos inimigos maléficos que, possuindo o conhecimento ali coligido, desencadeariam o Apocalipse. Temos assim  a Humanidade dependente do heroísmo de dois homens, um deles sacerdote, Alvaro Tertulli, e o outro, Riven, por ele contratado como guarda-costas e guia na desconhecida cidade de Sevilha, quando se dedicava ao «ofício» de arrumador de automóveis.
Pelo meio surge a Inquisição, instituição caducada pelo Papa Pio VIII na primeira metade do século XIX, mas tendo continuado a desenvolver clandestinamente a atividade, e desejosa de infletir a relação de forças no mundo católico ocidental, razão para também conspirar para se apossar do referido Manuscrito.
Estão assim criadas as condições para um romance movimentado com crimes terríveis a serem perpetrados sobre quem se julgava protegido pelas obras da Igreja: uma dúzia de sem abrigo envenenados ao ingerirem a refeição propiciada por uma instituição de caridade; meninos de coro decepados ou seriamente feridos por um vitral estilhaçado propositadamente quando estavam a atuar junto ao altar de uma igreja, doentes terminais abandonados à sua desdita por lhes terem raptado quem os cuidava. Os criminosos são quase sempre uma trupe de mendigos sórdidos, que atacam em grupo a mando de um velho pederasta, Amador, um antigo seminarista obcecado por uma vingança pessoal contra o clero em geral. Mas também um polícia corrupto, que serve de cúmplice ativo às forças maléficas.
O sexo está sempre presente e nunca é bonito de se acompanhar, porque conspícuo e violento.
Incumbidos de recuperar as cinco malas com a totalidade do Manuscrito, Álvaro e Riven vão recolhendo sucessivamente cada uma até serem capturados pelo exército de mendigos. O sacerdote morre numa das mais sinistras máquinas de tortura do Santo Ofício, enquanto o outro escapa do oportuno incêndio, que o livra dos inimigos. Embora o patrão o inste a suceder-lhe como novo Depositário do tesouro, destrói-o sem concluir, porém, que toda a trama era uma completa vigarice, engendrada pelo tio de Álvaro, quando ainda era um miúdo internado num colégio religioso e aí se viu humilhado pela severidade dos educadores.
Confuso e gratuito o romance apenas vale como entretenimento, embora nos questionemos sobre a perversidade de um autor capaz de criar situações próprias de uma imaginação doentia...

domingo, agosto 26, 2018

(DIM) «Planète Mars: suivez le guide» de Toby Macdonald (2017)


Será que astronautas terrestres pousarão no planeta Marte ainda a tempo de nos entusiasmarmos com tal façanha? Um documentário britânico produzido pela BBC e pelo Science Channel, quis responder a essa questão recorrendo ao trabalho de vários cartógrafos e a animações muito convincentes.
Nos anos mais recentes tem-se concluído que o planeta vermelho está geologicamente muito mais ativo do que se julgava. Contando com 4,5 milhões de anos de idade chegou a ter água em abundância à superfície. Hoje é fértil em paisagens grandiosas, aí existindo os maiores canyons e vulcões do sistema solar, grandes movimentações de areias e gelos e calotes polares colossais, não esquecendo os violentos e gigantescos tornados de poeiras e os geiseres de areia.
Adotando o estilo dos guias de viagem, o documentário constrói um atlas completo do planeta revelando-lhe muitas similitudes com a nossa realidade terrestre. As imagens colhidas a partir do espaço, as análises dos dados e as intervenções dos especialistas são complementadas com as imagens colhidas pelos dois Rovers ali em atividade e responsáveis por quase duas centenas de milhares de fotografias enviadas para a Terra. O que se comprova é estarmos perante um planeta vizinho em contínua evolução.

(DL) Os exilados também morrem de amor: um romance de Abnousse Shalmani


Aos oito anos, Abnousse Shalmani acompanhou os pais para o exílio em França, quando, em 1985, escaparam ao regime de Khomeyni. Estudou História, mas profissionalizou-se no jornalismo, ao mesmo tempo que rodava curtas-metragens e participava em múltiplos debates televisivos, sobretudo quando se discutia a condição feminina no Irão ou a legalidade do uso do véu.
Em 2014 publicou um panfleto político - «Khomeyni, Sade et moi» - em que recordava a infância sob a severa vigilância das mulheres-corvos que, completamente tapadas e com o véu islâmico, consideravam-se as guardiãs da moral e da virtude de acordo com os preceitos do ditador religioso. Daí a sua cólera por ver mulheres que, em França, querem vestir de acordo com essa regra contra a qual os pais se insurgiam  Num artigo de opinião na revista «Marianne» escrevia ainda há alguns meses: "Se as mulheres tivessem melhor memória, seria mais difícil que as ideias tradicionalistas e reacionárias fizessem das roupas uma questão de liberdade individual. (...) Porque não, não há nada vergonhoso, repreensível, sujo no corpo de uma mulher. Não há nada neste corpo que justifique impor um código de vestimenta, (...) cobri-lo com modéstia enquanto reivindica liberdade."
Há poucos dias Abnousse Shalmani  tornou-se um dos nomes incontornáveis da nova temporada literária em França com o romance «Les exilés meurent aussi d'amour». Numa das suas passagens ela conta: “ A minha mãe era um criatura feérica, que possuía o dom de tornar bonito o que era feio. Através da língua francesa, metamorfoseara-a em alquimista. Era para isso que serviam as palavras no exílio: combater o real e salvar o que restava do deslumbramento da infância.”
Neste romance, que dedica à progenitora, Abnousse Shalmani adota como alter ego uma miúda de nove anos, Shirin, chegada a Paris com nove anos, vinda com os pais para se integrar no clã familiar onde o comunismo servia de orientação ideológica e em que o quotidiano nada tinha de equivalente com o fausto vivido em Teerão.
Na aprendizagem do que a rodeia, Shirin descobrirá que os ideais podem ser mentirosos e assassinos. Apaixona-se por um cínico, inquieta-se com a chegada de um irmão perturbado, admira a mãe, mesmo vendo-a submeter-se às humilhações das suas temíveis irmãs celibatárias. Espanta-a a passividade abúlica do pai e torna-se amiga de uma sobrevivente do Holocausto, que pretende convencê-la das virtudes do riso como defesa contra a loucura humana.
Trata-se de um primeiro romance, com o seu quê de realismo mágico, mas dotado do humor e da ternura bastantes para considerar o exílio uma oportunidade de se ser feliz.

(DIM) «A Corrida à Arte» de Marianne Lamour (2013)


A irrupção de milionários pouco cultos, mas com as carteiras suficientemente abonadas para inflacionarem os leilões a pretexto de criarem ou enriquecerem as suas coleções, virou do avesso o mundo da pintura, da escultura e de todas as demais disciplinas artísticas.
«O Grito» de Edvard Munch mudou de dono em doze minutos, tornando-se numa das obras mais caras de sempre ao ser vendida na Sotheby’s de Nova Iorque por 120 milhões de dólares. Valor absurdo que apenas torna acessíveis as obras mais significativas do património mundial a um reduzido número de potenciais compradores, ainda que os mova o interesse especulativo, sobretudo ao adquirirem arte contemporânea. No caso desta última a regra passou a ser: comprar obras dos artistas atuais mais cotados, logo cuidando de as valorizar nos leilões. Tanto mais que, tendo-se tornado um mercado globalizado, a eles acorrem os que enriqueceram rapidamente na Ásia e no Médio Oriente.
Efeito perverso dessa evolução: os artistas secundarizaram as preocupações estéticas, reconvertendo-se em administradores das empresas, que utilizam a sua assinatura artística como marca, fabricando obras em regime de cadeia de produção de forma a satisfazerem a procura.
Rodado há cinco anos este documentário busca escalpelizar esse mudo opaco e exclusivo sem esconder o seu lado mais sombrio. Galeristas, colecionadores e vendedores de arte são convocados para darem a sua apreciação sobre o estado da arte, marcado por inquietantes derivas mercantilistas.



quarta-feira, agosto 22, 2018

(DL) Cinco notas sobre as práticas de viagem de António Mega Ferreira


1. No prefácio do seu livro sobre quarenta anos de viagens por Itália - um dos mais interessantes de quantos li no ano passado! - António Mega Ferreira lembra como há pelo menos cinco séculos que experiência similar estimulou muitos dos que a viveram a traduzi-la na originalidade das respetivas obras. Sá de Miranda terá sido o nosso primeiro autor renascentista. Cervantes induziria no Quixote muito do que ali vivenciara. Montaigne e Häendel fariam o mesmo, mas quem tornaria o Grand Tour uma obrigação para os espíritos mais eruditos do século XVIII em diante foi Goethe, que compreendeu como, mais do que o encontro com vestígios das mais antigas civilizações e da revolução humanista da Renascença, a experiência servia para melhor se conhecer a si mesmo. Daí por diante a viagem, mais do que a descoberta do exterior desconhecido, passou a significar a procura do eu interior.
2. Veneza destaca-se não só pela arquitetura, mas por ter feito da música aí composta um fenómeno popular, com o gosto de quem a ouvia a influenciar democraticamente a própria distribuição das notas na pauta. E também pelo facto de aí se ter assistido à rivalidade criativa e comercial de três enormes pintores: Ticiano, Tintoretto e Veronese.
3. Antes de Dante intentar a imposição de uma forma canónica de falar e escrever uma língua comum a toda a Península Itálica, imperava uma diversidade imensa de dialetos, que dificultava o entendimento entre os que ali eram vizinhos. Não é, pois, apenas pela sua notável «Divina Comédia», de que tantos italianos sabem inúmeras partes, que Dante é reconhecido como o poeta nacional do país, mas por ter sido quem melhor compreendeu o papel unificador da língua na criação da sua identidade.
4. Às tantas Mega Ferreira questiona-se, enquanto ateu, sobre o sentido de tanto o sensibilizarem as obras de cariz religioso encontradas um pouco por todo o centro e norte de Itália. E a resposta é mesmo essa: para que a arte nos toque não precisa da caução mística, que lhe esteve na origem.
5. Ao fim de quatro décadas a conhecer essa realidade, o escritor lamenta que tantas das cidades, que o haviam encantado, se tenham tornado parques de atrações para turistas nesta época em que, citando Esterhazy, eles não viajam, apenas mudam de lugar. E que escreveria hoje, quando a extrema-direita abocanhou o poder e passou a comandar os destinos de um país até então símbolo da cultura e do conhecimento?

segunda-feira, agosto 20, 2018

(DIM) A universalidade do cinema de Yasujiro Ozu no pós-guerra


O público ocidental só passou a conhecer as obras de Yasujiro Ozu, quando ele já tinha morrido. Culpa da sociedade produtora japonesa, que nunca investira na exportação desses filmes por os achar conotados em demasia com a cultura nipónica, não acreditando que pudessem interessar a quem nela não estava imbuído. Nesses produtores formara-se a ideia de só interessar aos europeus o que tivesse a ver com o exotismo constituído pelas histórias com samurais e geishas.
Hoje conclui-se o contrário: Ozu é considerado o autor de obras de teor universal, por terem a ver com sentimentos e inquietações próprias dos seres humanos, quaisquer que sejam as coordenadas geográficas onde vivam. Mas isso só é verdadeiro para os filmes posteriores à Segunda Guerra Mundial, porque os anteriores, sobretudo os do período mudo, têm a ver com quem fora quando chegara aos estúdios e, questionado sobre que tipo de cinema mais apreciava, dera como preferidos os policiais e as comédias dos estúdios de Hollywood. Nessa primeira parte da filmografia, abundam propostas de entretenimento sem preocupações políticas ou sociais. Rodando-os sem grandes pretensões, Ozu assinava três filmes por ano, nada que se comparasse com a época posterior a 1945 quando o sucesso do seu cinema lhe permitia dedicar mais tempo à preparação do argumento e à découpage, rodando com menos pressão e alongando-se na pós-produção. Daí que tenham então surgido as suas reconhecidas obras-primas.
Durante o conflito mundial, Ozu fora mobilizado para o apoio aos exércitos imperiais, sendo colocado na Manchúria, donde passaria para Singapura onde seria capturado pelos Aliados, que depressa o libertaram. Quando chegou ao Japão, após longa ausência, encontrou um pais completamente diferente e onde as mudanças tendiam a acelerar-se.  Ele próprio mudara e, por isso mesmo, nunca mais deixaria de abordar o tema do passado irrecuperável perante uma ocidentalização, que descaracterizava os compatriotas, embora lhes deixasse intimamente um rasto de nostalgia.

(DL) «Vinte Mil Léguas Submarinas» de Júlio Verne (1)


É a história de um submarino notável, diferente de qualquer outro até então concebido e destinado à missão de vingança de um homem sem nome. E um dos romances que mais contribuíram para a justa fama de Júlio Verne, entendido como precursor de realidades científicas só concretizadas no século seguinte.
A viagem é angustiante porque o perigo está quase sempre a acontecer, colocando os personagens a percorrerem as ruínas perdidas da Atlântida ou destroços de tesouros fabulosos assentes no leito dos oceanos. Três deles são prisioneiros a mando de um rebelde sem causa chamado Capitão Nemo, que tanto se vê perseguido por uma frota de navios inimigos decididos a capturá-lo como, ele próprio, não se coíbe de os ir afundando.
Encurralados num mundo submarino, que ia muito para além da imaginação, os reféns enfrentarão um monstro impressionante, uma lula gigante, mas também são premiados com muitos motivos de deslumbramento perante tudo quanto alcançam a partir das escotilhas envidraçadas.
Não havendo à data em que o escreveu, engenhos submarinos com esse nível de sofisticação, Verne teve no Nautilus um dos momentos de imaginação, que o prestigiaram como um dos nomes maiores da ficção científica. Quase todos os aspetos comerciais da exploração submarina foram previstos no livro: aparelhos para a respiração humana, nomeadamente as garrafas de oxigénio, a aquacultura, a procura de salvados em navios naufragados.
«Vinte Mil Léguas Submarinas» começa com a investigação em torno de um gigantesco monstro marinho, com forte currículo no afundamento de navios mercantes e de guerra em oceanos e mares de todo o mundo. Perseguido por uma fragata norte-americana, o monstro acaba por se deixar revelar no norte do oceano Pacífico. Imune aos arpões e aos canhões dos navios,  a «criatura» ataca a fragata e leva dois dos passageiros a caírem ao mar. Eles são um professor universitário e um seu criado, que veem as vidas doravante perturbadas. Durante horas, á luz intensa da Lua, os dois homens esbracejam á superfície do oceano, sempre temerosos de se virem a tornar presa do monstro marinho.
Quando julgam ver diante de si uma pequena ilha, nadam nessa direção e acabam recolhidos por quem causara a projeção para fora de borda do navio em que viajavam: a fera metálica movida a eletricidade, cujo nome não tardaram a conhecer.
Ao contrário da versão infantilizada, filmada pelos estúdios da Disney nos anos 50, o romance é dirigido a um público adulto, capaz de compreender-lhe as ilações políticas e filosóficas.

(S) Andreas Scholl a interpretar o «Nisi Dominus» de Vivaldi

(DIM) «Destino Plutão» de Dana Berry (2016)


Lá nos confins do Sistema Solar está esse corpo celeste chamado Plutão, que já foi posto em equiparação com os demais planetas, que circundam a estrela-mãe e depois tido como não tendo tamanho bastante para merecer a pertença a tão seleto clube. Algo indiferente a tal polémica, o documentário de Dana Berry dedicado á missão da sonda New Horizons.
Lançada em 2006 a nave estava incumbida pela Nasa de enviar novos dados sobre as longínquas periferias do Sistema em que a Terra se inclui. Nove anos depois, e percorridos cerca de 4,7 milhares de milhões de quilómetros, sobrevoou Plutão e a sua principal lua, recolhendo informações sobre as suas composições geológicas, relevos e atmosferas.
Antes de prosseguir na direção da Cintura de Kuiper, última etapa da sua longa viagem, a sonda deu o ensejo dos astrónomos surpreenderem-se com as similitudes entre Plutão e Marte.
Pedagógico graças às informações facultadas pelos que estiveram envolvidos na missão New Horizons, o documentário dá uma ideia precisa desse astro desconhecido, que pouco terá mudado desde que se formou há 4,5 mil milhões de anos. Enriquecem-no, igualmente, as numerosas modelizações e imagens espaciais soberbas.

domingo, agosto 19, 2018

(DL) «Dora - Fragmentos de uma Análise de Histeria» de Sigmund Freud (5)


Dora nasceu em Viena em 1882, catorze meses depois do irmão Otto. No relato do seu caso, Freud dá pouca importância à mãe, tida como inculta, mas tirânica na relação com os filhos, não conseguindo uma relação empática, que desse provimento ao que seria expetável da sua influência maternal. Depreciativamente Freud arruma-a nos casos de «psicose das donas-de-casa.» E, no entanto, como viria a reconhecer ulteriormente, os problemas de Dora poderiam explicar-se em grande parte por esse défice afetivo recolhido de quem a dera à luz.
Aos cinco anos Dora chuchava continuamente o polegar  esquerdo enquanto puxava as orelhas de Otto com a outra mão. A compensação oral era complementada pelo papel de substituição assumido pelo irmão. A histeria revelava-se no conflito psíquico, que dissociava a representação do afeto na forma de recalcamento, denunciado no sobreinvestimento libidinoso de uma parte erógena do corpo, com que descarregava a excitação.
A atividade intensa da zona bucal de Dora causara a irritação da garganta, que explicaria a tosse persistente e, depois, a afonia. Os sintomas explicitavam o desejo reprimido do fantasma sexual.
Freud enfatiza o papel de Philipp, o pai de Dora, em quem reconhecia inteligência, perspicácia e atenção aos filhos, sobretudo quando ela estava na fase edipiana. Mas, quando ela tinha seis anos, a tuberculose do pai obriga a família a mudar-se para a vila termal de Murano, onde conhecem os Zellinka, aí radicados por motivos similares, já que Peppina, a esposa, apresenta perturbações nervosas. Ao constatar quanto ela passa a ser importante para Philipp, que a tomara por amante, Dora revelava novos sintomas psicossomáticos: deslocamento na retina, momentos de paralisia, enxaquecas. Eles agravam-se, igualmente, devido a uma conversa ouvida aos adultos, segundo a qual ficara a saber que o pai contraíra sífilis antes do casamento, o que fè-la identificar a sexualidade com uma vertente destrutiva, que estaria na origem da desorganização familiar. Nalguns dos fantasmas, que a obcecavam, imaginava o coito do pai com Peppina.
Na época Freud só apostou no complexo de édipo positivo. Mais tarde suspeitaria da bissexualidade de Dora, componente ainda ausente da sua congeminação teórica e que poderia explicar mais aprofundadamente os mistérios da mente da paciente.

sábado, agosto 18, 2018

(DIM) «As origens das civilizações» de Tim Lambert (2018)


A civilização humana despoletou verdadeiramente nas colinas da atual Turquia e nas planícies iraquianas, quando os nossos antepassados caçadores e recolectores sentiram a necessidade de se agruparem em comunidades alargadas, sedentarizadas nas primeiras aldeias e cidades.
Antecessoras das nossas megalópoles esses aglomerados mais povoados, criados por engenho e necessidade, criaram as primeiras invenções e inovações, que se tornaram em incríveis aceleradores do progresso.
No sudeste da Anatólia, no campo arqueológico de Göbekli Tepe, encontrou-se o primeiro monumento criado pela espécie humana, constituído por enormes e misteriosos pilares recheados de inscrições e datado de há vinte mil anos. Ao tornar-se num local onde se concentraram diversas tribos, aí nasceu, há dez mil anos, a cultura do trigo, grande responsável pela definitiva apetência pela sedentarização.
A primeira fase da agricultura foi a era mais violenta da história humana. Para se protegerem os lavradores fortificaram as aldeias e aglomeraram-se em grupos maiores para obterem melhor segurança. A Mesopotâmia da Antiguidade ilustra bem o paradoxo de a guerra ter significado, ao mesmo tempo, morte e destruição, mas, ao mesmo tempo, um vetor civilizacional. No vale mexicano de Oaxaca, a raridade das terras férteis suscitou sangrentas rivalidades e morticínios, mas também aí surgiu Monte Alban, capital zapoteca, onde foi criada a primeira civilização no continente americano. Muito forte e organizada, essa sociedade guerreira só foi derrotada pelos exércitos de Teotihuacan, quando esta se tornou na superpotência regional, que daria origem a autêntica idade dourada.
Esta série britânica, criada na sequência de «Quando o Homo Sapiens povoou o planeta», alterna evocações históricas recriadas por atores, com intervenções de investigadores e outros especialistas dos primórdios da Humanidade, muitos dos quais arqueólogos entrevistados nos próprios locais de prospeção de vestígios ancestrais. O espectador é convidado para uma viagem pelos vários continentes e épocas passadas, testemunhada com recurso a excelente fotografia.