quarta-feira, março 30, 2022

«As Intermitências da Morte», José Saramago, 2005

 

Que prazer imenso o de regressarmos aos bem conhecidos romances de Saramago depois de, em tempos, com outra maturidade, os absorvermos com a mesma pressa com que consumíamos outros bens culturais. Agora que a parca já não demorará muito a tolher-nos o caminho, lemos com outra lentidão o que merece ser apreciado com delongas para atermo-nos nas reflexões, que o autor disseminou enquanto pareceu connosco dialogar ora comentando o seguimento das intrigas, ora até a sua verosimilhança.

Em ano de centenário a todos os títulos de Saramago pretendemos voltar, embora a extensão da obra prolongue o esforço para além do aprazado 16 de novembro em que o autor cumpriria redondo aniversário. Por agora estamos a concluir esta história decorrida num país imaginário, mas com dez milhões de habitantes, onde a morte deixou de ceifar vidas a partir de 1 de janeiro. E, se no «Ensaio sobre a Cegueira» era a doença que a (quase) todos limitava, ou no «Ensaio sobre a Lucidez» a votação em branco, que aos políticos desconcertava, aqui surge a singular imortalidade - e todos os inconvenientes práticos, que se lhe associam! - a virar de pantanas o equilíbrio social com o governo incapaz de corresponder aos problemas que, a prazo, se sabe irresolúveis. Mormente os da anunciada falência da Segurança Social.

Vale-lhe que a morte decide pôr fim às inesperadas férias, regressando quando já havia uma maphia a lucrar com o transporte dos moribundos até à fronteira, providenciando-lhes o desenlace tão só cruzada essa linha. Mas, nem mesmo assim, os vivos se livram de grandes inquietações com a morte, porque a sabem doravante anunciável, com oito dias de antecedência, através de envelope cor de violeta, dando-lhes apenas tempo para lavrarem testamento e organizarem o que o desaparecimento súbito deixaria desarranjado.

Quando julgaríamos retomado o equilíbrio perdido com o incipit (“No dia seguinte ninguém morreu”) é a própria morte a ficar confrontada com inesperada dificuldade: um violoncelista escusa-se a morrer, dele sempre vindo devolvida a carta fatal. E mais não vale a pena adiantar porque, enquanto spoiler, tiraria a piada de prosseguir a descoberta desta história até ao seu final. 

segunda-feira, março 28, 2022

Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, Catarina Vasconcelos (2014)

 

No ano passado, depois da Elza ter voltado a casa após setenta e três dias no hospital, o primeiro filme que vimos no cinema foi “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos. Porque não havia outro, que mais tivesse a ver connosco: pela ausência da avó da realizadora, há muito falecida, e a recuperação da sua presença através das cartas ao marido embarcado no alto mar. Porque também nós trocámos centenas de páginas enquanto eu vogava em todos os oceanos e me não era difícil pôr-me na pele de quem gostaria de conservar imorredoira a recordação da Elza se - como pareceu inevitável a certa altura! - ela me tivesse falhado!

Felizmente seria a dois que descobriríamos essa forma de Catarina Vasconcelos, através dos seus documentários, unir as histórias da sua família à do nosso país. Conseguindo assim uma imediata empatia, porque muito do que conclui também nós o percecionamos, quer na nostalgia das ilusões perdidas, quer na expetativa das que soubermos reavivar.

Só agora chegámos a esta “Metáfora” que, em meia-hora, antecipa o que, seis anos depois, a realizadora exploraria na longa-metragem. Dois irmãos trocam cartas no décimo aniversário da morte da mãe, vencida por um cancro. E, através de fotografias, de filmes e dos testemunhos dos demais familiares, trazem-nos de volta as esperanças alimentadas pela Revolução de Abril, tanto mais que, por essa altura, havia um primeiro-ministro de má-memória, que mandava emigrar os mais novos e aos outros instava a não adoecerem para não levarem à falência o Serviço Nacional de Saúde.

Rodando o filme em Londres, onde fazia o mestrado, Catarina Vasconcelos metaforizou as preocupações através do elefante passeado nas margens do lago do Hyde Park. Porque é animal dotado de prodigiosa memória capaz de o levar a visitar os seus mortos. A mesma preocupação, que guia a ela e ao irmão, quando pretendem trazer de volta quem muito acreditou na Revolução e a quem tão cedo a doença levara. 

quarta-feira, março 23, 2022

«Vider les lieux», Olivier Rolin, Ed. Gallimard, 2022

 

Confesso ter lido Rolin com outro entusiasmo muitos anos atrás, quando as afinidades políticas convergiam e ainda o não constatava apologista de causas, que nunca poderiam ser minhas.

O envelhecimento tem destas coisas: olhamos para as fotografias, admiramo-nos com quanto os demais espelham a passagem dos anos e convencemo-nos de connosco ter ficado quase tudo na mesma. E, no entanto, sabemo-nos autores de charla, também para nós próprios comprometedora.

Não enjeito, porém, a leitura - nem que seja apenas das primeiras vinte ou trinta páginas, que a Gallimard faculta no seu site - nesta altura de lançamento do mais recente título do autor. Até por voltarmos a confluir numa mesma ilação: as casas em que vivemos estão tão cheias de livros e objetos trazidos de muitas viagens que, eventual mudança para outro espaço, implicaria autêntico trabalho de Hércules. A que Rolin efetivamente se submeteu porque, ao fim de trinta e sete anos a habitar um apartamento na Rue de l’Odéon em Paris, viu-se instado a despeja-lo em vésperas do primeiro confinamento pela pandemia. Por um lado era expulso de casa, por outro o governo impunha-lhe a prisão domiciliária.

O que o romance nos ensina é quanto um enorme sacrifício pessoal também comporta a oportunidade inesperada para revisitar cada um dos objetos a enfiar nos caixotes e deles ir resgatando memórias, que vão compondo uma autobiografia cronologicamente caótica, mas se compõe do que pode ser tido como palimpsesto da sua personalidade.

Ao longo do romance Rolin recorre a uma espécie de litania em torno da expressão “le matin de mon départ”, repetido até ao momento de sair desse espaço, definitivamente encerrado no seu passado. Ele que muito viajara, e de tão diferentes latitudes trouxera emoções e conhecimentos, depois transpostos para uns quantos romances, acabou por projetar algo de semelhante nesta viagem àquele que fora a casa em que vivera metade da sua vida. 

sexta-feira, março 18, 2022

Jorge Silva Melo (1948-2022)

 

O desaparecimento dos nossos melhores intelectuais deixam-me sempre no estado de alguma orfandade por reconhecer o quanto lhes devo na forma como me deram a conhecer outras formas de percecionar a realidade, de com ela me emocionar. Nuns casos tivemos tempo para prepararmos devidamente o luto, porque a idade e as doenças iam abreviando a inevitabilidade da notícia - assim sucedeu com Manoel Oliveira ou com José Saramago -, noutros ela surgiu-nos brutal por dela não estarmos à espera - casos de Eduardo Prado Coelho ou José Mário Branco.

Embora vítima da terrível doença maligna, que tanto nos assombra, o desaparecimento de Jorge Silva Melo contou-se entre os últimos. Porque ainda há pouco lhe ouvíramos o entusiasmo com que preparava a encenação da peça do Noel Coward, que os seus Artistas Unidos estrearão um destes dias. E pressupúnhamos, que ainda outras propostas de descobertas se seguiriam, a somar às muitas mais com que nos brindou neste último meio século, mais precisamente desde o Teatro da Faculdade de Letras, que estaria na génese da Cornucópia, cujas peças foram bem mais interessantes, quando ele ainda lá estava do que, depois, quando se guiaram apenas pela orientação de Luis Miguel Cintra e Cristina Reis.

Nos Artistas Unidos deu-nos a conhecer muito do teatro, sobretudo de linguajar anglo-saxónico, que nem suspeitávamos que existisse, ou, se o conhecíamos, nem lhe adivinhávamos a importância.

E ficaram os filmes, quer as longas-metragens de ficção, que iam-se estreando com limitado sucesso comercial, mas sempre diferentes do que víamos no mainstream, quer sobretudo os documentários sobre os vultos mais interessantes da arte contemporânea portuguesa. Títulos como os que dedicou a Ângelo de Sousa, José Guimarães ou Sofia Areal deram-nos a conhecer as suas propostas estéticas e incentivaram-nos a dissociar-nos dos cânones comummente associados a esse tipo de apreciação.

Confrontamo-nos com uma das perdas incomensuráveis cuja dimensão não podemos imaginar: que mais ele nos iria ensinar, que novidades seriam as que nos poriam a olhar para um texto dramático, uma obra de arte de uma forma que nos fariam sempre sentir enriquecidos? Como aliás sempre acontecia, quando o entrevistavam e nos quedávamos a ouvi-lo com a merecida atenção.  

quinta-feira, março 17, 2022

«Women make film», Mark Cousins (2018)

 

Ando a deixar-me conduzir por Tilda Swinton pelas laboriosas rotas escolhidas pelas muitas mulheres realizadoras da História do Cinema de acordo com o projeto de Mark Cousins, que tanto tem contribuído para olharmos a arte cinematográfica no que de melhor ela expressa.

Muito embora quase nunca lhes sejam dadas as mesmas condições, que aos homens para demonstrarem o talento, as realizadoras têm-nos proposto outras formas de olhar para as histórias, denotando uma abordagem alternativa quase sempre mais enriquecedora das que estamos habituados.

A proposta de Cousins também permite o reencontro com obras há muito vistas e cuja memória permanece incrustada no que de melhor herdámos das experiências passadas em salas de cinema. Por exemplo «O Quadro Negro», filme da iraniana Samira Makhmalbaf em 2020, que é dado como exemplo de um início original - numa estrada poeirenta um grupo de professores vai-se aproximando da câmara e carregando às costas a ferramenta de trabalho com que procurarão contrariar o analfabetismo nas aldeias curdas para que se dirigem. Trata-se de um desses momentos que deu vontade de regressar a esse universo muito peculiar, merecedor de mais do que uma única apreciação. 

O ciclo dos Strougatski sobre o século XXII


Os cenários de ruínas em que a Ucrânia está convertida podem remeter para um futuro sombrio como o que os irmãos Strougatski criaram no seu assombroso «Stalker» a que Tarkovski concedeu não menos impressiva versão cinematográfica. Sobretudo se o perigo nuclear não se ficar pelas ameaças e ganhar expressão concreta num anódino carregar de um botão.

A obra dos irmãos russos não comporta apenas esse lado distópico como o demonstra a recente edição francesa do seu Ciclo do Meio-dia, antologia de quase mil e trezentas páginas com os seus dez romances e mais umas quantas novelas situadas no século XXII. A sociedade humana terá então alcançado uma dimensão ideal sem guerras, nem dinheiro, e com um governo bonançoso apostado na prospeção do Universo. Mas, inesperadamente, um mistério cósmico tenderá a ser o grão de areia capaz de travar a engrenagem. É uma história do futuro bem diferente da conhecida na literatura anglo-saxónica (Isaac Asimov, Robert Heinlein) e com títulos sugestivos como «É difícil ser Deus», «O Besouro na Termiteira» ou «O Longínquo Arco-íris».

Proposta bem capaz de pôr abundantemente a salivar os apreciadores da ficção científica como eu, impenitente, me confesso.

quarta-feira, março 16, 2022

Jack Kerouac à procura das raízes

 

Foi um encontro perturbador o de Jack Kerouac com Brest, quando ali chegou numa tarde de 1965, e descobriu uma cidade inteiramente reconstruída depois da quase total destruição da Segunda Guerra Mundial, povoada de gente fardada, porque aquele finis terrae  fora escolhido pelo governo francês como importante base militar.

Procurando livrar-se da asfixia, o viajante solitário, subiu às alturas da cidade, enfrascou-se num bar e, às três da manhã, ao porem-no na rua, sem sítio onde pernoitar, assustou-se com as sombras, adivinhou ameaças a cada passo. Impensável para quem se pretendia irreverente, foi bater à porta de um comissariado de polícia em busca de ajuda. Que lhe foi dada, porque logo lhe encontraram cama disponível num albergue.

Quatro anos faltariam para a sua morte, mas Kerouac fora ali buscar resposta para as suas origens. Nos primeiros anos de vida falara exclusivamente francês, porque nascera numa família do Québec, que reivindicava-se descendente de um aristocrata desta cidade bretã onde então se via. Para concluir, nos dias seguintes, que a memória dos antepassadas iludira-se durante duzentos anos com realidade bem menos louvável. O tal fundador da sua linhagem na província canadiana, escapara de França in extremis, porque a Justiça procurava-o para lhe fazer pagar os danos causados a virginal donzela, que ousara violar.

Se intentava encontrar referência identitária, que justificasse um sentido para a errância estrada fora, a desilusão não tinha cura. Restava-lhe esse mundo onírico, que justificaria um dos seus menos conhecidos títulos - «O Livro dos Sonhos» -, aquele onde prosseguiria e eterna errância pela Alma, seja lá o que ela for.

quinta-feira, março 10, 2022

Réplicas e algumas inovações

 

1. Era Wim Wenders, quem considerava todas as histórias contadas apenas mudando a forma de replicadas. E isso é evidente com Submersos,  o filme de 2020, realizado por William Eubank em 2020, que só me senti tentado a ver por aparecerem Kristen Stewart e Vincent Cassel no elenco. Embora seja evidente que até os atores e atrizes mais interessantes aceitam fazer coisas que o não são apenas pela necessidade de terem com que pagar os melões. Algo de que não podem gabar-se os produtores por não terem arrecadado receitas mundiais suficientes para verem qualquer retorno no investimento.

A história é a repetição de muitas outras: uma estação de pesquisa e de perfuração no fundo do mar, mais precisamente na Fossa das Marianas, é afetada por um terramoto e começa a colapsar. Norah, a engenheira mecânica, que Kristen Stewart protagoniza, começa a minimizar os danos e a resgatar os colegas sobreviventes, mas a situação vai-se agravando progressivamente até por entrarem em cena uns monstros marinhos apostados em ganharem direito a almoço. Como de costume o rol de vítimas vai crescendo com conta, peso e medida, depois de por elas termos ganho alguma simpatia. Os ataques das vis criaturas acontecem quase sempre às escuras para facilitarem o trabalho aos especialistas em efeitos especiais e criarem algum suspense.

No final há direito a sacrifícios heroicos e a salvamentos improváveis, deixando-nos a sensação de já termos visto este tipo de histórias não se justificando, que sejam repetidamente imitadas.

Curiosamente, três anos antes, Wim Wenders também rodou um filme com o mesmo título, mas sem qualquer relação possível nem com a (falta de) qualidade deste filme, nem com o argumento em si.

2. Ruben Alves ganhou notoriedade com um título, que encheu cinemas por todo o país - A Gaiola Dourada -, mas não repetiu o feito com este: Miss é a história de um rapaz que, desde criança, alimenta a ambição de ganhar a eleição de Miss França. Com a ajuda de um conjunto improvável de amigos lá vai conseguindo vencer as sucessivas etapas até ao momento culminante, que acaba num expectável escândalo.

Ficamo-nos pela mensagem final, dada pela organizadora do concurso, que liberta-se da incumbência concluindo que, à custa de tanto se focalizar na forma, acabara de perder de vista o conteúdo.

Embora inovando algo neste tipo de tema, o filme pouco mais é do que um entretenimento com alguma graça, que se vê sem lamentos pelo tempo a ele consagrado. 

Os encantamentos e assombrações do casal Woolf

 

1. No sudoeste da Inglaterra Virgínia Woolf encontrou um paraíso feito de praias de areia fina e de águas cor de turquesa, quando o pai comprou a Talland House em St.Ives, a altitude bastante para ver toda a costa e ter em frente o farol, que integraria o título do romance, que dela mais aprecio por ter a ver com as memórias felizes  da infância. No jardim dessa casa, a que a família acedia de comboio a partir de Londres, Virgínia e a irmã, Vanessa, comprometer-se-iam a tornarem-se no que mais desejariam ser: uma escritora, a outra pintora.

Quando criaria esse meu tão apreciado romance, Rumo ao Farol, Virgínia escolheria como protagonista uma pintora a viver o drama da falta de inspiração, tema muito próximo de si mesma, amiúde acometida dessa angustia. Embora o tema mais relevante do romance o aproximasse do que se passa hoje na Ucrânia com as famílias a perderem a aprazível serenidade dos dias pelo absurdo da guerra, que lhes caiu em cima. E, de facto, para toda uma geração de ingleses, a Primeira Guerra surgiria como avassaladora transformação da forma como entendiam o pacífico curso dos dias.

 2. Quando essa guerra marcou o seu presente, Leonard Woolf, - acabado de casar com Virgínia, que conhecera no círculo intelectual de Bloomsbury -, já vivera o assombro de outra realidade, a colonial ao colocarem-no como administrador do distrito de Hambantota, no sul da ilha de Ceilão entre 1904 1 1911.

Embora decidido a comunicar o melhor possível com a população local, aprendendo a falar a sua língua, Leonard passou pela obrigação de servir de juiz, que não podia privar-se de decretar a condenação à morte dos culpados dos casos a ele apresentados. Essas mortes contribuíram para demitir-se voltando a Inglaterra e virando ostensivamente costas a uma carreira, que a família entendera promissora e adequada aos seus pergaminhos. Pelo contrário Leonard limitou-se a aproveitar a experiência para sobre ela escrever The Village in the Jungle, cuja leitura bastará para considera-lo muito mais do que o mero marido da influente escritora. 

quarta-feira, março 09, 2022

Brasas e cinzas

 

1. Pode um primeiro amor influenciar a identidade de alguém a tal ponto, que o inspirará a escolher o nome por que se queira tornar conhecido? A resposta a essa questão está no que sucedeu ao jovem suíço Frédéric Sauser, cujo pai fartou-se da tendência para a preguiça enviando-o para Moscovo em 1902 para estagiar com um amigo, aí a exercer o ofício de relojoeiro. O rapaz encantou-se pela grande cidade russa e, sobretudo, pela bela Hélène Kleinmann a quem deu aulas de francês e lhe motivou a primeira paixão assolapada. De regresso a Neuchatel escreveu-lhe cartas ardentes, mas depressa deixaram de ter resposta, por ela morrer tragicamente, queimada viva num incêndio provocado por um candeeiro a óleo. Inspirado pela tragédia, ele escolheu o pseudónimo que, literariamente, o consagrou: Blaise Cendrars, que remete para as brasas e as cinzas desse episódio real.

De Moscovo ele trouxe, igualmente, a capacidade para tudo mistificar, sendo pouco crível que tenha feito a viagem de transiberiano, sobre a qual escreveu conhecido poema, que seria um dos grandes momentos literários das vésperas da Primeira Guerra, onde se alistou como voluntário e onde perdeu parte do braço direito.

2. No mesmo ano em que Cendrars chegou a Moscovo uma enorme tragédia afetou uma ilha das Caraíbas, a Martinica, onde a explosão do vulcão Pélée arrasou a cidade de Saint Pierre fazendo mais de trinta mil mortos.

Curiosamente, da única vez em que estive nessa ilha, já lá vão trinta e cinco anos, nem sequer dei por essa montanha que, porém, domina toda a ilha. De Fort-de-France, a cidade a que o «Funchal» aportou numa das suas viagens, ficou a ideia de me sentir numa qualquer cidade de província gaulesa sem quase atentar no seu lado crioulo, só verdadeiramente discernível ao afastar-me do centro e explorando a periferia.

Olhando em perspetiva para os muitos sítios, que a vida profissional, me permitiu conhecer, fica-me a noção de ter-me para eles preparado tão mal, que perdi muitos dos seus mais interessantes aspetos, de que só a posteriori, vim a saber.

3. O mesmo terá sucedido com a existência de Frineia, a bela cortesã do século IV a.C., que costumava incendiar os ímpetos dos aristocratas atenienses quando, com eles, se cruzava ao passear-se pela Agora, que amiúde visitei nos seis meses vividos em Pireu, nos arredores da capital, que costumava visitar ao fim-de-semana. Terá sido um dos antigos amantes, despeitado, por já não lhe aceder aos encantos, que a terá levado a tribunal acusando-a de organizar cultos a deusas estrangeiras para que cooptava outras mulheres.

Em risco de ser condenada à morte por juízes que, quase todos, tinham sido, ou ainda eram seus clientes, ela despiu-se da parte de cima deixando boquiabertos os que assistiam ao julgamento. E assim ficou demonstrado que uma imagem vale por muitas palavras da mais vibrante oratória porque impôs-se a ideia de inquestionável inocência para quem igualava em beleza a celebrada Afrodite. E assim nasceu um episódio da mitologia grega, que inspiraria tantos poetas do Romantismo europeu.



terça-feira, março 08, 2022

Um verão vermelho

 

Há quem comente que «Verano Rojo», o primeiro romance dos costa-riquenho Daniel Quiros  é o que de mais aproximado poderia ser um thriller assinado por Dashiell Hammett, se este tivesse a formação ideológica de Gabriel Garcia Marquez. Mas, independentemente da intriga policial, que lhe subjaz, convida-nos para as praias de areia branca do país centro-americano, particularmente para a zona de Tamarindo, hoje uma das estâncias turísticas de maior sucesso do país, onde o custo por noite num dos seus hotéis de cinco estrelas é maior do que o do ordenado mensal dos seus camareiros.

Não importa que Guanacaste, a província onde ocorre o crime, e serve de rampa de lançamento para tudo o que decorrerá a seguir, seja a mais pobre e rústica da Costa Rica, por ainda ter boa parte da população dedicada à agricultura e à pecuária. É nela que uma das mais conhecidas habitantes da vila, Ilana Echevarri, a Argentina, aparece crivada de balas, de bruços na areia, as águas da maré do início da manhã a movimentarem-lhe os cabelos  depois de apagarem as pegadas ali deixadas por quem a assassinou.

Don Chepe, um amigo dela, que procurara o sossego da reforma na região, decide assumir o papel de investigador começando por dirigir as suspeitas para quem tinha sabidas divergências com a morta -  Pinueve e Zaguate - confessos recetores de duzentos dólares para a ir vigiando.

Para o leitor a culpabilidade desses suspeitos seria demasiado óbvia e Daniel Quiros introduz um importante momento da História do país: o atentado de la Penca em 30 de maio de 1984, no outro lado da fronteira da Nicarágua com a Costa Rica, que se saldara por quatro mortos e uma vintena de feridos, tendo por testemunhas o jornalista sueco Peter Olsson e o suposto fotógrafo alemão Werner Michel, que, na realidade, é Victor Gandini, ex-guerrilheiro do Exército Revolucionário Popular, dado como morto em 1989 na ocupação do quartel La Tablada em Buenos Aires.

Quando Chepe consegue estabelecer comunicação com Olsson para esclarecer as circunstâncias do atentado, ei-lo que o descobre morto, aparentemente de suicídio, ilação, que não o convence por dar com o cadáver demasiado «arrumado» no leito para corresponder a suposto ato voluntário.

Gandini passa a constituir o foco do interesse do protagonista, que o identifica como antigo amigo de Ilana durante mais de trinta anos e até com ela ter partilhado uma ação revolucionária contra o general Videla. Teria sido na sequência do fracasso dessa Operação Gaivota, que ambos se haviam radicado na Nicarágua, aí rompendo relações.

Uma carta deixada por Argentina a Chepe põe-no na pista de El Angel, um conhecido milionário mexicano de reputação mais do que duvidosa, mas em dívida para com ela na sequência do salvamento de um filho seu. É esse Gabriel Eduardo Mejia, quem dá a Chepe a localização de Gandini em coordenadas GPS, garantindo-lhe a possibilidade de esclarecer definitivamente os motivos do crime e a sua autoria.

Embora só acessível em espanhol, o romance abre o apetite para a obra de um escritor ainda jovem, que recorre à atmosfera tropical do país natal para desmentir a sua tão glosada quietude e demonstrar como até nela se cruzam os protagonistas das histórias, que têm marcado o subcontinente latino-americano nas últimas décadas...

sábado, março 05, 2022

Nascer em Auschwitz

 

Este é daqueles filmes, que nos conseguem surpreender por saírem daquilo que deles se espera e tornarem-se em algo de muito diferente, sem daí resultar a conclusão se terá ou não valido a pena essa novidade.

À partida temos a história improvável, mas real, de uma judia de origem húngara sujeita a experiências do sinistro Josef Mengele, mas dele consegue esconder a gravidez até a ver culminada num parto clandestino, quando estava iminente a chegada das Forças Aliadas.

Angela Oroz não conheceu o pai e, apesar da fome, do frio e do medo que a envolveu nos primeiros dias, conseguiu singrar e tornar-se numa mulher forte, capaz de notável resiliência perante as adversidades, quer as conhecidas no país natal sob o regime comunista, quer já na América para onde conseguiu emigrar nos anos sessenta.

A história em si não acrescenta nada que não soubéssemos sobre o Holocausto, mas poderia cingir-se ao seu regresso a Budapeste para mostrar à filha o apartamento onde morara ou à mútua descoberta de Israel confraternizando com soldados a quem agradeceu o empenho na salvaguarda de um país, que tem por contraponto a difícil sobrevivência dos palestinianos.

É quando os realizadores - Eszter Cseke e  András Takács – mudam de foco para centralizarem-se em Kati, que ficamos perplexos com o que descobrimos: ao contrário do que imaginávamos, entre Ângela e a filha não existe qualquer empatia, até por aquela se ter tornado agnóstica em contraponto com a jovem mulher, que aderiu entusiasticamente ao judaísmo mais ortodoxo, vestindo-se física e mentalmente enquanto tal. Assistimos então a uma insuspeitada agressividade da filha em relação à mãe acusando-a de lhe ter transmitido os traumas contraídos na primeira infância, obstinando-se em educa-la de forma a que pudesse sobreviver a qualquer dificuldade. Isso significou faltar-lhe no afeto, que entendeu prova de fraqueza para a qual ela não deveria sujeitar-se. E, no entanto, Kati não pretenderia outra coisa...

O que fica em aberto é a possibilidade de haver uma transmissão genética dos traumas, que tenda a prolongar-se por mais do que uma geração. Por isso mesmo a grande preocupação de Kati é poupar aos filhos esse legado, mesmo recorrendo para tal a um paliativo, que não posso aceitar como eficiente. Porque não vejo na religião a resposta positiva para o que quer que seja.