quarta-feira, janeiro 31, 2018

(AV) O fetichismo de Marcel Duchamp em torno dos pelos púbicos

Ao morrer em outubro de 1968 Marcel Duchamp deixou uma obra póstuma, que mostrava uma mulher alongada, sem cabeça, com as pernas afastadas deixando ver uma vulva rapada. A obra intitulava-se «Étant données: 1º la chute d’eau; 2º le gaz d´eclairage» e fora construída em segredo entre 1946 e 1966 no atelier que o artista tinha em Nova Iorque. Respeitando-lhe a vontade, a viúva só a  deu conhecer postumamente, estando hoje exposta no Museu de Filadélfia.
Ela consta de uma porta rústica fechada hermeticamente, mas com dois pequenos buracos por onde se pode espreitar uma parede por cuja brecha se pode ver a mulher nua em causa.  Ela tem na mão esquerda uma tocha, que ilumina uma paisagem bucólica com um céu nublado e uma cascata a espraiar-se num lago brumoso.
O corpo nu oferece-se impúdico, encadeado pela lâmpada de 150 watts, que lhe foca o sexo.
Alguns críticos sublinharam as semelhanças com o quadro «A Origem do Mundo» de Courbet, que Duchamp vira em casa de Jacques Lacan em 1958. O enquadramento do sexo feminino é quase idêntico em ambas as obras. Mas com a diferença de no conhecido quadro ele se apresentar com abundantes pelos púbicos. Daí a questão de se ponderar nas razões para Duchamp optar pelo sexo rapado de pelos.
Logo houve quem recordasse o projeto de Duchamp nos anos 20 em que imaginava filmar a baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven a depilar o púbis. Segundo Yiannis Toumazis “os pelos púbicos femininos mereceram particular atenção por parte dos dadaístas e dos surrealistas”.
O próprio Duchamp cultivara um fetichismo peculiar confessado pela sua primeira esposa, Lydie Sarazin-Levassor: “ ele tinha um autêntico horror pelo mínimo pelo” considerando que ele determinava que o homem não fosse senão um animal um pouco mais evoluído.
Esse horror levava-o a depilar cuidadosamente o corpo, tudo fazendo para eliminar o mínimo pelo. Pouco terá faltado para que rapasse a cabeça, condescendo dificilmente a manter aí a sua cabeleira .
Quando conheceu Lydie, Duchamp convenceu-a a deixar-se submeter a uma depilação total, que constituiu uma sessão memorável, porque utilizou um creme de cheiro tão intenso, que só se começou a diluir ao fim de quarenta e oito horas.
Será que esse fetiche contribui para melhor lhe explicar a obra? As interpretações são variadas e uma delas enquadra esse ódio de Duchamp aos pelos no contexto de uma profunda hostilidade à bestialidade, que ele faz coincidir com o materialismo. Contra a obsessão pelos bens materiais, Duchamp procurava enfatizar a relevância do espiritualismo, que se tornara fora de moda depois de 1860.
Daí considerar que, a partir de Courbet todos os artistas se tinham tornado numas bestas, que deveriam ter sido internados em nome da hipertrofia do ego de que seriam sofredores.
Depois dessa data “cada artista arvorou-se do direito de ser mais livre do que os que o tinham precedido: os pontilhistas mais livres do que os impressionistas, os cubistas ainda mais, e os futuristas, e os dadaístas e por aí adiante. Mais livre, mais livre, mais livre - chamam a isso liberdade. Os bêbedos são postos nas prisões. Porque é que o ego dos artistas deveria ser autorizado a empestar a atmosfera? Não sentem essa podridão?”
Para Duchamp, Courbet inaugura essa era de falsa liberdade, que consiste em assinar obras provocadoras baseadas na transgressão dos tabus.
Num ensaio intitulado «Marcel Duchamp por si próprio (ou quase)», Alain Boton explica que o pelo representa o olhar retiniano no que pode ter de mais trivial e libidinoso. Daí o bigode que Duchamp aplica à Gioconda, acompanhada na frase “ela tem fogo no cu” (LOOOQ). Aquilo em que se acrescentam pelos torna-se vulgar, lúbrico, até mesmo venal. No sexo feminino os pelos evocam forçosamente algo que deve ser possuído. Daí que um sexo rapado escape às tentativas de apropriação, tornando-se no símbolo de algo que falta. A mulher representada nesta obra transforma-se assim numa caixa de fantasmas: pode-se espreita-la através dos buracos, mas não é passível de ser tocada, possuída. Perde o valor de objeto sexual. Segundo Bergson “a arte visa afastar os símbolos utilitários: as generalidades convencionalmente e socialmente aceites, ou seja tudo o que mascara a realidade para nos confrontar com a sua verdadeira face”.
Resta saber quem era essa mulher cujo corpo sempre nos escapará... 

(S) Sérgio Godinho: «Grão Da Mesma Mó»

(S) Paul Robeson, um herói do Século Americano

A mais recente edição da «The New York Review of Books» alerta para o recente lançamento de dois livros dedicados a esse verdadeiro monumento da música norte-americana, que se chamou Paul Robeson. É a oportunidade para recordar um artista imerecidamente esquecido que, além de excelente cantor, foi também um militante ativo das causas progressistas.

Simon Callow, que assina o artigo bastante crítico para com os dois livros - mas será de admirar que o faça tendo em conta a sua filiação no exército dos que veem a realidade da Guerra Fria pelo filtro mais maniqueísta? - reconhece, porém, quanto a voz de Robeson possuía em si o “sentido inerente da verdade”, acrescentando: “não havia artifício, não havia truques vocais, nada entre o ouvinte e a música. Cativava a atenção sem esforço, perfeitamente focado em algo de mais profundo, não apenas vindo da laringe, mas da experiência do que era ser humano.”
A sua interpretação de espirituais constituía autêntica descoberta para um público dos anos quarenta e cinquenta, que os descobria não apenas como canções de amor, de vida e de morte, mas também como gritos de escravos desejosos de uma vida melhor. Enraizadas no passado, esses temas testemunhavam  a opressão e a humilhação quotidiana dos negros, que os cantavam. E esse público via-o como o representante idealizado da sua raça: magnífico no aspeto, elegante na fala, inteligente e carismático sem parecer ameaçador.
Na década de sessenta ele desapareceu dos Estados Unidos, onde o FBI e a Casa Branca o apontavam como inimigo público, mudando-se para Moscovo, identificando-se com o regime soviético. Por essa altura estava em ascensão uma nova geração de militantes negros, que o viam como obsoleto para tempos, que exigiam ação mais determinada, até mesmo violenta.
As televisões deixaram de emitir os seus filmes mais famosos - «Sanders of the River» (1935) e «The Proud Valley» (1940), as rádios silenciaram-lhe os discos. Por isso mesmo muitos surpreenderam-se com a notícia da sua morte em 1976, pois julgavam que isso tivesse acontecido muitos anos antes.
Hoje poucos o conhecem nos dois lados do Atlântico apesar de ter protagonizado tournées extremamente vibrantes, que foram grandes acontecimentos artísticos no tempo dos nossos avós. E, no entanto, não é possível olhar para o século XX norte-americano sem referenciar a sua importância.
Nascido nos últimos anos do século XIX, ele tivera por pai um antigo escravo que, na época da Guerra Civil, fugira para o Norte e matriculara-se na universidade de Princeton, tornando-se pastor presbiteriano. Rigoroso com os filhos, impôs-lhes uma ética voluntarista, que explica a influência causada em Paul, que se viria a revelar um aluno modelo.
Estudioso, atlético, artisticamente talentoso, era igualmente um desportista, que cantava no coro da escola e dava os primeiros passos como ator aos dezasseis anos, altura em que interpretou pela primeira vez o Otelo de Shakespeare. Quando se formou em Direito houve quem lhe previsse um brilhante futuro político, mas logo desistiu da profissão, quando, num tribunal, um estenógrafo recusou-se a tomar notas ditadas por um «preto». Foi para Harlém e encetou carreira como ator em peças de Eugene O’Neill, como cantor de música afro-americana e jogando ocasionalmente futebol como profissional. Alcança a fama num ápice, tornando-se icónico nos dois lados do Atlântico como o rosto da cada vez mais afirmativa negritude.
A consciência política foi-se-lhe consolidando, tornando-se amigo de Kwame Nkrumah e de Jomo Kenyatta, que liderariam os movimentos de libertação africanos contra os regimes coloniais. Por toda a Europa foi-se interessando pela música popular procurando interpretar alguns dos seus temas nas línguas, que ia aprendendo para o efeito. Procurando superar as barreiras da língua, que lhe dificultavam a comunicação com povos, sobretudo com os do grande continente africano, que desejava conhecer melhor, matriculou-se na Escola de Línguas Oriental e Africana na Universidade de Londres.
A primeira visita a Moscovo aconteceu em 1934 numa tournée da peça «Stevedore», que abordava explicitamente a realidade racista. O público endoidou com ele e Eisenstein imaginou-o como protagonista do seu projeto (não concretizado) de «Jean-Christophe, imperador do Haiti».
Entusiasmado por, pela primeira vez na vida, ser tratado como um ser humano, não como um negro, decidiu matricular o filho numa escola moscovita. Mas já Espanha o atraía por ser campo de batalha contra o fascismo: cantando para as forças republicanas, que o receberam com grande entusiasmo. Quando discursava enfatizava a luta pela igualdade racial como importante vertente da luta geral contra o fascismo. Mais do que um artista, era respeitado sobretudo pela força moral.
A II Guerra Mundial encontrou-o mobilizado em inúmeras ações cívicas de apoio ao esforço militar, que acreditava capaz de contribuir para um mundo bem mais justo do que o existente até então.
Mas quando Hitler invadiu a Polônia e a guerra na Europa se agudizou, retornou à América para engrossar a luta pela liberdade democrática. Ele viu a participação americana na guerra como uma tremenda oportunidade para remodelar toda a vida americana e, acima de tudo, transformar a posição dos negros dentro da nação. Considerado um dos nomes maiores da cena artística de então as galas em que participava esgotavam todos os lugares disponíveis nas enormes salas de espetáculos de então.
A derrota nazi e nipónica não lhe proporcionou a sociedade, que sonhara: os GI’s negros, que regressaram às suas terras como heróis de guerra viam-se sucessivamente agredidos e assassinados por racistas brancos dispostos a demonstrarem que não estavam dispostos a aceitar qualquer mudança  no tipo de sociedade segregada, que teimavam em manter.
Quando  quatro afro-americanos foram assassinados na Geórgia, Robeson encabeçou uma delegação de três mil delegados, recebida por Harry Truman na Casa Branca, mas o presidente que lançaria a seguir a campanha anticomunista e daria azo à caça às bruxas dos anos seguintes, foi indelicado e saiu da sala, quando pressentiu a ameaça de lutas pelos direitos cívicos nas palavras do artista.
A  Administração Truman faria doravante tudo para desacreditar Paul Robeson, que se viu boicotado nos espetáculos e tournées  que se seguiriam. Discursando no Conselho Mundial da Paz, em Paris, ele diria: "Nós, na América, não nos esquecemos de que foi às costas dos trabalhadores brancos da Europa e dos milhões de negros que a riqueza da América foi construída. E estamos resolvidos a solidarizarmo-nos uns com os outros. Rejeitamos qualquer delírio histérico que nos exorta a fazer guerra a qualquer um." Esses comentários valeram-lhe o ostracismo geral da imprensa norte-americana e, pior ainda, o distanciamento dos cobardes, que lideravam as organizações afro-americanas. Quando apareceu num comício em Peekskill, quase se viu linchado.
Convocado pela Comissão das Atividades Antiamericanas, Robeson viraria a mesa que o separava do biltre que o interrogava, dizendo-lhe que nenhum fascista o expulsaria do país, que fora construído pelos escravos negros que tinham sido os seus antepassados. 
Vendo-se despojado do passaporte, tornou-se num prisioneiro no seu próprio país, impedido de atuar aonde o admiravam ainda mais em função da coragem com que mantinha a permanente denúncia da exploração dos trabalhadores, da opressão dos negros e da ambição imperialista do complexo industrial-militar.
Quando lhe devolveram o passaporte em 1958 mudou-se para Londres, voltando a interpretar o papel de Otelo no Shakespeare Memorial Theatre em Stratford-upon-Avon. Regressa igualmente a Moscovo, onde o continuam a idolatrar.
Só voltou aos Estados Unidos em 1963, quase se silenciando nos treze anos seguintes, amargurado pelo rumo que ali se tomara no pós-guerra, distanciado mais do que nunca da Utopia, que adivinhava nunca vir a testemunhar...

terça-feira, janeiro 30, 2018

(S) Paul Robeson a cantar "Ol' Man River" em 1936

(C) Hoje estou com vontade de ser abertamente presunçoso

Apetece-me ser presunçoso. Diria que até mesmo muito vaidoso. É que já intuía isso mesmo, mas um estudo conduzido pelos investigadores Richard Daws e Adam Hampshire, do Imperial College London, veio confirmar o que já me era evidente: os ateus são mais inteligentes do que os que se confessam religiosos.
Inserido na mais recente edição da publicação científica «Frontiers in Psychology», esse trabalho veio corroborar vários outros sobre a relação entre a religiosidade e a inteligência e, igualmente, taxativos na mesma conclusão.
Sessenta e três mil participantes foram submetidos a um conjunto de doze testes com duração total de meia hora e em que revelavam as suas capacidades de planeamento, raciocínio, atenção e memória.
Os resultados foram concludentes quanto á superior inteligência dos ateus em relação aos religiosos, situando-se os agnósticos entre uns e outros. O baixo QI dos participantes religiosos acentou-se, sobretudo, nos exercícios em que a lógica colidia com a sua propensão para se deixarem guiar pela intuição.
Com tal prova não tenho de me voltar a sentir algo incomodado com a arrogância de olhar para os participantes em rituais católicos ou de qualquer outra religião e ajuizá-los nas fronteiras entre os mentecaptos e os baralhados.  Se é a Ciência que mo prova com tão veementes resultados!
Pena é que, segundo o último inquérito nacional, só sejamos 13% os ateus que disso se orgulham. Dá para sentirmo-nos assim a modos de míopes em terra de cegos... 

segunda-feira, janeiro 29, 2018

(DIM) Os Marx numa Noite na Ópera

Não seria, por certo, um dos primeiros que me lembraria, mas «Uma Noite na Ópera» pode enquadrar-se numa lista não muito extensa dos filmes da minha vida. Porque me divirto sempre que o revejo, porque é exemplar na forma como destrói todos os paradigmas socialmente instituídos e porque suscita a rendida admiração ao tipo de humor consagrado por Groucho Marx.
Que o trio de comediantes bem poderia dispensar quem se assume como responsável por os dirigir, adivinhamo-lo: entregasse o estúdio a realização a qualquer dos seus tarimbeiros e o resultado seria sempre o mesmo, bastando ter uma noção de onde melhor colocar a câmara. Os gags de Groucho, as caretas de Harpo e as burrices de Chico são mais do que suficientes para o divertimento se consumar.
No filme não há réplica de Groucho, que não seja brilhante no contrassenso, absurdidade e irreverência do seu sempre frenético ritmo. Arrivista e gigolo por convicção, gosta tanto de ópera como eu de suchi (ou seja nada!). Deveria ser-nos antipático! Mas resulta o oposto: adoramo-lo e ansiamos por o ver em cena para nos depararmos com a costumada impertinência egoísta e mal educada. As suas palavras (muitas delas difíceis de traduzir, porque concertadas num jogo onde a ironia decorre da sua homofonia) espelham uma erudição, que sabemos ter sido seu apanágio. E as ações visam a perturbação total da ordem estabelecida aqui simbolizada no espetáculo operático. Às tantas vemo-lo a testar até quanto consegue encher um pequeno camarote de um navio ou escandalizar a puritana matrona de serviço.
Groucho cumpre o preceito do método Stanislawski de estar em cena e ao mesmo tempo dela distanciado para melhor destruir o politicamente correto e perverter o sistema.
Em contraste  com esse seu irmão mais novo, Harpo representa a criança no mundo dos adultos, incapaz de resistir a deitar-se onde os outros querem passar ou apertar nas buzinas sempre que as apanha ao alcance. Mas dotado da capacidade de surpreender com a beleza extraída da sua harpa, que toca com a delicadeza oposta à rapidez e destreza com que executa as suas acrobacias só em aparência desajeitadas. O final pertence-lhe quando o perseguem enquanto se pendura nos cenários em difícil número de equilibrismo, aqui e ali pontuado por uma careta para os perseguidores.
Finalmente, quanto a Chico, o mais velho dos três, e por isso o mais sério, é quem desempenha o papel de interlocutor com os incumbidos dos papéis secundários (todos eles caricaturais!). Ainda assim ele tem um gag muito engraçado em que é suposto contar a expedição que fizera com recurso a um avião (“tínhamos já percorrido mais de metade do caminho, quando nos lembrámos que esquecêramos o avião!”) e executa o seu habitual número de virtuoso do piano.
Conjuntamente considerados, os três atores concretizam um espetáculo total, que apesar da realização quase anónima, da intriga linear e de atores secundários sem chama, nos consegue divertir.



(S) O Concerto para piano e orquestra nº 5 de Prokofiev (direção de Gergiev)

(DL) Ratos mortos na Hungria fascista

Porque é que a Hungria tem estado sujeita à ditadura de Viktor Orbán sem que a Comissão Europeia proceda de acordo com o que lhe estipulam os tratados? O impressionante romance de Benedek Totth pode ajudar a compreender o porquê ao dar conta do estado de degenerescência moral verificado nos seus adolescentes, autênticos niilistas sem pruridos quanto a concretizarem os instintos homicidas.
A história começa com um crime: atropelando um ciclista um grupo de adolescentes nem se dá ao trabalho de irem ver quem fora a sua vítima. O narrador, que é um deles, descreve-os como adolescentes desocupados, demasiado afeiçoados a metanfetaminas e ao sexo com as namoradas tolas nos passeios sem destino ao volante dos carros emprestados pelos complacentes papás.
Os insultos são constantes  e as referências nulas. A sociedade a que pertencem deixou de 
controlar as mensagens, que começou por lhes facultar. Por isso a gratuitidade dos gestos é total, tanto envolvendo o urinar para uma piscina como ter relações sexuais com uma criança. A brutalidade vai num crescendo servindo o episódio inicial como a ignição de um descontrole progressivo da violência até ela desarvorar totalmente no capítulo final. Impera a lei do mais forte, a busca por uma emoção de que se se revela incapaz.
O relato é o de um fascista sem consciência de o ser, suscitando o asco de quem para tudo aquilo olha de fora e se questiona como é possível instigar alguma forma de humanismo em quem procede como o mais hediondo dos selvagens.

(C) A metodologia de Darwin para descrever o mundo colorido que encontrou

(S) Janine Jansen e os amigos a tocarem o Septeto, opus 20, de Beethoven

(DIM) Utopias e Distopias a propósito de «The Handmaid’s Tale»

A série «The Handmaid’s Tale», que foi tão premiada na recente cerimónia dos Globos de Ouro, suscita algumas reflexões sobre a razão para que escritores, filósofos ou cineastas se debrucem sobre cenários utópicos ou distópicos.
A formulação da Utopia por Thomas More correspondia ao desejo de uma sociedade diferente daquela em que vivia e em que o poder feudal de Henrique VIII contrariava a emergência de uma nova realidade económica protagonizada pela classe dos comerciantes burgueses. A conceptualização de uma sociedade ideal deriva do pressentimento da mudança operada naquela em que se existe. Daí que não seja coincidência que Karl Marx tenha imaginado a sociedade comunista quando a Revolução Industrial estava a virar do avesso todas as relações de classes anteriormente existentes.
Contemporâneas das Utopias, as Distopias têm por autores os que se intimidam perante as mudanças, desejando que as coisas continuem como são. Em plena Guerra Fria, quando o «american dream» tendia a ficar obscurecido pela propaganda que enaltecia os aspetos sociais positivos do regime soviético, a panóplia de filmes de terror ou de ficção científica, que ameaçavam o modo de vida americano, tinham propósitos manifestamente proselitistas. Da mesma forma, quando esse mesmo sistema capitalista abanou por causa da primeira crise do petróleo, o incidente de Three Mile Island justificou toda uma série de distopias relacionadas com a energia nuclear, mormente um apocalipse capaz de gerar mundos tipo «Mad Max».
Embora ainda só vá no terceiro episódio, «The Handmaid’s Tale» é, de facto, uma série de excelente gabarito, quer na tessitura narrativa, quer na interpretação das personagens principais. Mas não deixa de ter subjacente a vontade conservadora dos que se intimidam perante um futuro, que anteveem pior do que o atual. Quando a História raramente andou para trás e, quando o fez, foi no recuo de um passo para logo dar dois em frente...
 

(S) O Septeto Opus 40 de Adolphe Blanc

(EdH) Heródoto na Babilónia

«A Assíria contou decerto com muitas cidades importantes, mas a mais conhecida e a mais forte, aquela que depois da destruição de Nínive passou a ter a sede do poder real, foi Babilónia. Eis como ela era feita.» Assim começa o relato de Heródoto sobre a grande urbe da Mesopotâmia.
Vivia-se então a meio do V século antes de Cristo e o império de Nabucodonosor fora derrotado oitenta anos antes pelo persa Ciro. Mas, entretanto, também os Persas haviam sido derrotados nas Guerras Medas e a Babilónia caíra na alçada grega. Heródoto passeia-se por ela estimulado pela curiosidade que por tudo sentia. Fiel ao seu método visita toda a cidade e conta-lhe a história.
Dos esplendores arquitetónicos às prodigiosas culturas das margens do Eufrates, da lendária rainha Semiramis ao colérico Ciro, passando pelo culto de Marduk e pelas cerimónias dos casamentos leiloados, Heródoto investiga. Para nosso deleite...

(DIM) O Termómetro de Galileu

Estreado agora no Festival de Roterdão, «O Termómetro de Galileu», assinado pela realizadora Teresa Villaverde, tem muitos motivos que me possam estimular na sua descoberta. Por um lado dá a conhecer um cineasta italiano cuja obra desconheço, mas tentarei descobrir com urgência, tão interessantes me parecem os seus projetos criativos. Por outro lado, a realizadora confessa a vontade de dar testemunho cinematográfico a uma relação amorosa e familiar duradoura, como hoje é difícil encontrar. Ora, conhecendo eu e a Elza uma intensa ligação amorosa há quase 44 anos (mesmo que dando razão aos versos de Brel “bien sûr nous eûmes des orages!”) é sempre bom comparar a nossa «receita» com a de outrem. E, finalmente, será curioso olhar para a forma como o filme foi construído sem o apoio de uma equipa, cabendo a Teresa Villaverde a responsabilidade por tudo - imagens, sons, montagem, etc.– que se vê no filme. Um título a não perder no Indie ou no DocLisboa deste ano...

sábado, janeiro 27, 2018

(DL) O deplorável tio-avô de Javier Cercas

No primeiro capítulo de «O Monarca das Sombras» Javier Cercas afiança nunca ter desejado abordar a vida de Manuel Mena, o tio-avô falangista, que morrera ao serviço da insurreição franquista.
Compreende-se essa intenção: confessar a familiaridade genética com um fascista não serve de cartão de visita a ninguém. São raros os relatos autobiográficos dos filhos de nazis e  de outros facínoras que tais. Os conhecidos ora os tentam desculpabilizar atribuindo-lhes um envolvimento menos comprometedor com os crimes perpetrados do que o documentado, ora deles se dissociando violentamente para fazerem crer que a condição hedionda não se transmite pelos genes.
A verdade é que o escritor espanhol acabou por dedicar um romance - o seu mais recente! - a esse familiar mal reputado. Talvez porque a mãe sempre adorara o tio como alguém de quem, da meninice, guardara boas recordações, talvez por, através dele, voltar a proceder à radiografia de um passado ainda com grandes influências nos nossos dias. Ou não serão os comportamentos de Rajoy e do entronado Bourbon a propósito da Catalunha a manifestação de uma herança ainda por eliminar pelos que se viram derrotados em 1939?
Cercas costuma servir-se de outros romances e filmes na construção da sua própria narrativa. Nas primeiras páginas já lidas referencia dois: «O Deserto dos Tártaros» de Dino Buzzati, serve-lhe para desenvolver um paralelismo com a progenitora. A exemplo de Giovanni Drogo, que fora destacado para uma fortaleza distante onde deveria incumbir-se da defesa contra os invasores asiáticos, a mãe do autor transferira-se da província estremenha, onde a família de origem tinha um estatuto quase senhorial, para a catalã Girona, onde o marido arranjara emprego razoavelmente bem remunerado, mas onde só se podiam enquadrar numa pequena burguesia indiferenciada dos demais. Exilada da terra natal, ela vira a vida escoar-se sem nela fazer outra coisa senão esperar. Esperar pelo marido e pela caterva de filhos, que lhe iam nascendo e prendendo ao lar.
A outra referência utilizada por Cercas é «A Aventura», o filme de Antonioni, que essa mulher de idade avançada considerara o melhor filme alguma vez por si visto. Por uma razão: a personagem que é deixada na ilha onde decidira passear e prontamente esquecida pelos parceiros do cruzeiro em que participava, dali zarpando sem voltarem a preocupar-se com o seu desaparecimento, leva-a a reconhecer a rapidez com que se esquece quem morre. E esse era o motivo de pesar que a levava a lamentar o quanto já quase ninguém recordava esse Manolo, tombado numa batalha sem sequer ter tido tempo para lhe crescerem no rosto os pelos da barba. Motivo de sobra para Cercas decidir dar o dito pelo não dito e dedicar-se à biografia do deplorável tio-avô.

(S) «O Arquipélago», o novo disco de Amélia Muge e de Michales Loukovikas:

As Partes do Todo (XIV) - 27 de janeiro de 2018: ruralidades

Nos anos 60 e 70 organizaram-se grandes investigações coletivas e pluridisciplinares por todo o território francês. Uma delas incidiu numa pequena aldeia da Borgonha com quatrocentos habitantes. Concretizado por quatro jovens mulheres, que integravam o Laboratório de Antropologia Social dirigido por Claude Lévi-Strauss e Isac Shiva, esse trabalho decorreu entre 1967 e 1975 multiplicando entrevistas sucessivas com quem ali vivia, repetindo-as ano após ano para ir constatando as alterações de valores e de opiniões, que os tempos iam impondo.
Tina Jolas, Marie-Claude Pingaud, Yvonne Verdier e Françoise Zonabend instalaram-se em Minot e começaram a recolher informações nos arquivos comunais, mas depressa compreenderam a importância de privilegiarem o contacto direto com os aldeões, que se tornaram seus informadores privilegiados de quanto pretendiam coligir.
As quatro antropólogas igualmente concluíram sobre a vantagem de coletivizarem o esforço, prescindindo da inicial abordagem individual, trocando entre si todos os dados recolhidos, que lhes permitissem depois organizá-los num apreciável conjunto de publicações em forma de livros.
De um ponto de vista teórico, a investigação em Minot revelou-se inovadora por ter sido orientada pelos métodos já bastante experimentados pela antropologia social em contextos exóticos e que haviam incidido sobre a parentalidade, o sistema matrimonial, a memória familiar, os espaços dos rituais ou as figuras tutelares.
Construíram assim uma informação aprofundada sobre uma sociedade rural prestes a desaparecer em que as mulheres - enquanto esposas, mães ou filhas - viviam subjugadas por um sistema patriarcal que as sobreexplorava sem escrúpulo. Microssociedade fechada, avessa aos estímulos exteriores, até os casamentos eram contratualizados com primos suficientemente distantes, para não suscitarem grandes riscos de consanguinidade, mas conhecidos o bastante para não serem tidos como completamente desconhecidos.
Ao conhecer esta investigação científica podemos concluir quão semelhantes seriam as realidades francesa e portuguesa em épocas semelhantes. Porque a mesma desconfiança perante quem vinha de fora da comunidade e a consideração da mulher como ser privado dos direitos reconhecidos aos homens, aproximaria por certo as culturas rurais de ambos os países nesse passado não tão remoto quanto poderíamos imaginar.

sexta-feira, janeiro 26, 2018

As Partes do Todo (XIII) - 26 de janeiro de 2018: a propósito das selfies

1. Porque estamos fadados a ter por Presidente um selfieman é oportuna a leitura do ensaio, que a filósofa e psicanalista Elsa Godart publicou há menos de dois anos na Albin Michel e que se intitula «Je selfie, donc je suis», complementado por um subtítulo ainda mais sugestivo: metamorfoses do eu na era do virtual.
Vivemos de facto num tempo em que vemos tanta gente a fotografar-se à nossa volta. Com o auxílio de um extensor captam-se à beira de uma falésia, em frente à Gioconda, nas cataratas do Niágara ou ao lado do ator preferido. Depois vão para as redes sociais e expõem-se: eu, e eu, e eu, e …
Representará a crise de um narcisismo em estado agudo? O sintoma de um egoísmo sobredimensionado? Uma utilização nevrótica da sua imagem?
Elsa Godart demonstra que esta moda mais não é do que o indicio de uma modificação radical da nossa perceção do tempo e do espaço, sobretudo relacionada com o pensamento e a linguagem em proveito de uma afirmação quase dogmática do poder do virtual e da imagem.
Por trás das transformações de uma sociedade perturbada pela informática que nos priva da sua consciência, perfila-se uma crise de identidade que nos devolve á crise da adolescência, pois a selfie mais não é do que o regresso à fase do espelho. Àquela em que nos púnhamos frente a ele e nos questionávamos sobre quem éramos.
O que resultará deste fase do selfie, que exprime sobretudo dúvidas existenciais de um sujeito de mal consigo mesmo? No fundo que lugar pretendemos atribuir ao que é humano por trás dos ecrãs dos smartphones?
Vamos avançar no livro para que ele nos sugira as interrogações, mais do que as respostas que, essas, cabem exclusivamente a nós…
2. Relacionado com essa sempiterna busca de quem somos fica uma frase de Santo Agostinho, que dizia algo assim: o que eu sou, não o sei. O que já sei, já não o sou.
Será impossível compreendermos o que realmente somos?
3. Um ciclista avança numa estrada enquanto se vai filmando com a ajuda de um extensor. Subitamente cai, sangra abundantemente, mas nunca deixa de se filmar.
Moral da história: quem passa o tempo a olhar-se a si mesmo não correrá o risco de se aleijar?
4. O que existe de paralelo entre a obsessão com as selfies e o pianista, que no meio da atuação se põe a pensar na forma como os espectadores o estão a ver e desafina? Ou o orador de uma conferência, que se evade do tema da mesma para atentar no efeito que está a ter em quem o ouve e se vê subitamente com um vazio a interromper-lhe o discurso?
Essa excessiva atenção a nós mesmos não equivalerá ao acidente do tal ciclista?