terça-feira, novembro 29, 2022

Miolo: quando nos psicadelizávamos!

 

21 de novembro de 2022

Não fora ter perdido a participação no Woodstock para comparecer a um dos principais shows televisivos da época, e Joni Mitchell não teria estado no festival da ilha de Wight, que fez soar definitivamente o dobre de finados sobre a cultura hippie de que se constituíra símbolo muito peculiar na forma como enunciava a sua versão da realidade, mormente o pioneirismo relativamente às ainda imberbes preocupações ecológicas. No continente americano os valores psicadélicos já passavam então por brusco fim com o assassinato de Sharon Tate numa luxuosa mansão californiana.

Vi agora o registo filmado do festival inglês e tem de se reconhecer o quanto lhe terá sido difícil silenciar a multidão, mais interessada nas drogas pesadas do que no que se passava em palco. Ademais vendo-se para ele atirada bem mais cedo do que ditava a programação simplesmente porque os incompetentes organizadores não tinham quem lá colocar nessa altura.

Compreende-se a depressão em que se deixou afundar nos anos subsequentes anos 70 levando-a a viver como eremita numa remota região do seu Canadá natal. E admirar-lhe a força do regresso, quando veio soar mais jazzy por influência de Mingus e com a serenidade conferida pela pintura em que passou a expressar-se com os gestos determinados de um Pollock ainda que, com a tela na vertical...

sábado, novembro 26, 2022

Miolo: Talentos, que só a maturidade apura!

 

20 de novembro de 2022

A primeira vez que fui à catedral de Rouen trazia de memória a série de quadros de Claude Monet e considerei impossível ter ele conseguido perspetiva suficientemente distanciada do monumento para vertê-lo para as telas tão enfiado o via dentro da malha urbana da cidade.

Fui depois rever as reproduções dessas obras e compreendi melhor, porque Monet não conseguiu dar uma vista completa do edifício, mas ao mesmo tempo melhor atentou nos seus rendilhados detalhes. Só essa proximidade forçada com o edifício possibilitava ambas as considerações.

Parte essencial do legado de Monet, a série dedicada à catedral situa-se temporalmente no auge do movimento impressionista para o qual contribuiu com alguns dos preceitos canónicos essenciais.  No entanto, quando o pintor foi passar uma temporada na cidade - em 1872, quando tinha 31 anos - alojando-se em casa do irmão, que trabalhava na então pujante indústria química, interessava-o apenas pintar o Sena cujos matizes da água com os reflexos do sol lhe pareciam oportunos para a nova linguagem estética, que pressentia estar ao seu alcance.

A obsessão pela Catedral só aconteceu vinte anos depois, quando ali voltou e compreendeu tratar-se de desafio à medida da sua ambição. Porque as alterações da fachada ao longo do dia, mediante a mudança da inclinação do sol e os humores da meteorologia, nunca a deixavam estática na aparência por muito tempo. Por isso ele decidiu combater essa matéria como se a pedra se transformasse em vibrante carne. Ademais com tantos pormenores arquitetónicos, que lhe pareciam inesgotáveis à sua  limitada atenção.

A temporada de 1892 passou sem que ele se sentisse particularmente satisfeito com os resultados. Mas, no regresso em 1893, intuiu-se dotado da capacidade em alcançar o que idealizara: ao voltar ao atelier de Giverny para concluir as peças artísticas adiantadas em Rouen, já tinha pleno domínio do conceito, que a todas organizava e conferia a coerência de uma série com trinta perspetivas diferentes sobre a mesma fachada. Por ela depreendendo-se a evolução, que o estilo nele vincou naquele período criativo.

quarta-feira, novembro 23, 2022

Miolo: uma inexplicável forma de religiosidade

 

18 de novembro de 2022

Deleito-me com o maravilhoso registo do Concerto para Violino de Beethoven, tal qual Anne-Sophie Mutter e Herbert von Karajan o interpretaram em 1984 com a Filarmónica de Berlim. Porque, embora haja quem lhe critique o amaciamento de asperezas deixadas pelo compositor na partitura, há a sensação de perfeição tal qual a pretendida pelo maestro, que produziu a gravação como se de testamento se tratasse, ademais com aquela miúda de vinte anos por quem sentia uma cumplicidade paternal. Porque é notório o assumido apagamento do narcísico Karajan para que Anne Sophie melhor exprima o incomparável talento na lenta, muito lenta, interpretação como se nos devêssemos ater a cada nota, ouvindo-a extasiadamente, uma a uma.

Mesmo para um ateu, como me confesso, há como que o reconhecimento de uma forma de religiosidade sem nome, mas pressentida como exequível. 

Miolo: um centenário e dois octogenários

 

17 de novembro de 2022

O centenário de Saramago tem merecido justo destaque em iniciativas que o celebram enquanto canónico escritor, filósofo e humanista. Ademais tornado indiscutivelmente importante na cultura portuguesa com um Nobel, que apenas teve o condão de mais amesquinhar quem o quis depreciar.

Nós vimos relendo-lhe os romances sempre rendendo-nos à sua qualidade e ao quanto contribuem para nos fazerem refletir sobre o quanto nos importa, nesta altura da vida, o estado do mundo e o de uma humanidade mais povoada de defeitos que de virtudes.

Circunstancialmente fazemos um parêntesis nessa abundante prosa para descobrirmos como eram os seus dias em Lanzarote de acordo com o testemunho de Pilar del Rio em A Intuição da Ilha. Que nos confirma a disciplina rigorosa com que se punha à secretária para lançar palavras no papel replicando o afinco do operário com orgulho no seu ofício. E de como era imensa a generosidade capaz de atrair quem o via como um daqueles incontornáveis maîtres à penser, em tempos imprescindíveis para ajudarem a avançar o pensamento ocidental, agora em estado letárgico com tanta distração a ele destinada por quem o quer amorfo e passivo. Aquilo que ele rejeitava liminarmente ser.

 

Por estes dias também se celebram os oitenta anos de Daniel Barenboim e de Martin Scorcese. Ao primeiro vi-o a dirigir o cada vez mais maduro Lang Lang e a West East Divan Orchestra em Salzburgo numa peça de De Falla, constatando-se-lhe os sinais de um envelhecimento, que não lhe retira nenhuma das qualidades de maestro, mas parece condicionar-lhe a vivacidade da expressão do rosto.

De Scorcese vamos regularmente revisitando os percursos golgotianos dos seus mais memoráveis personagens - o Travis de Taxi Driver, o Jack LaMotta de O Touro Enraivecido - mesmo se um deles, não menos representativo, o Henry Hill de Tudo Bons Rapazes – tivesse acabado por renegar quem quisera dele ter sua criação.

Apesar das suas preocupações religiosas convenceu muitas vezes este impenitente ateu, que confesso ser! 

segunda-feira, novembro 21, 2022

Miolo: O que tem substância e o que é só espúrio maniqueísmo

 

Aquilo que eu Amava  é um dos romances que ando a ler dando para perceber, porque o marido da autora - Paul Auster - tanto a enaltece: bastam cinco páginas de cada vez para ficar com a noção de ter lido muitas mais. Porque fico a saber tanto sobre cada uma das personagens de Siri Hustvedt que, apesar de intelectuais de Manhattan, têm uma espessura inexistente nas de um Woody Allen. Até mais seguras de si próprias do que as conhecidas nas histórias de quem assume ser ela quem, em casa, continua a ser a mais exigente e imprescindível das suas críticas.

 

Volto a ouvir a música de Mori Kanté que tanto animou as pistas de dança dos finais dos anos 80 com o seu  "Yé ké Yé ké"  e dando a descobrir o som da cora mandinga. A maioria dos que apreciaram o tema nunca pressentiram o quanto a música do cantor guineense decorria da filiação na tradição dos griots, os representantes da cultura de transmissão oral de histórias de aldeia em aldeia pela qual se difundiam os valores ancestrais e se promoviam idealizados modos de comportamento de quem os ouvia. E para a qual Kanté fora intensamente preparado desde criança...

 

Vou vendo uma coisa esdrúxula de produção francesa chamada Apocalipse, Guerra dos Mundos, realizada por  Isabelle Clarke e Daniel Costelle, bom exemplo da intoxicação ideológica destinada a impor uma perspetiva maniqueísta sobre a História humana nos últimos oitenta anos. Os comunistas são diabolizados, os norte-americanos idolatrados e os pobres dos franceses incapazes de evitarem o desastre na Indochina.

Imagina-se que, produzido por soviéticos ou chineses, constatar-se-ia a mesma menorização do inimigo imperialista e a idealização dos motivos para o terem combatido.

É tão rara a intenção de se analisarem os acontecimentos com a preocupação de equilíbrio, que melhor expliquem o sucedido! E possibilitem a interpretação da atualidade, mormente a da guerra na Ucrânia, sem as paixões, que enviesem quem as discute como se a expressão da sua vontade bastasse para a vitória de quem considera estar no seu lado da barricada. 

domingo, novembro 20, 2022

Coisas Vistas: A omnipresença da morte

 

Tenho uma relação ambivalente com documentários em formato pré-necrológico. Por um lado reconheço-lhes o mérito de nos recordarem gente memorável associada a gratas experiências de vida. No caso de Antes da Vida Começar (2005), foi para filmes e peças de teatro, que remeteu - mas com a sensação de se focalizar em quem já tinha bilhete passado para o “outro lado”. Porque Isabel de Castro sabia iminente o fim anunciado pela prolongada doença!

Durante uma hora António Correia entrevista-a a propósito de uma longa e multifacetada experiência de vida, que tanto a fez escritora precocemente publicada aos 14 anos - com o mesmo título do documentário -, como a pisar os palcos nessa mesma idade, ora fazendo-a atriz de dezenas de filmes espanhóis e portugueses de qualidade mais do que duvidosa, como, depois, a comprometer-se com autores e encenadores, que lhe deram papéis de exigência totalmente diferente.

Naquela que foi a segunda ou a terceira vez, que o vi, Antes da Vida Começar contribui para perdurar a memória da atriz por mais uns quantos anos perdendo naturalmente interesse quando já não restarem em vida os muitos que a apreciaram nos ecrãs dos cinemas ou nas salas de companhias de teatro independentes.


2. A morte está também omnipresente em Histórias de uma Vida, a 16ª longa-metragem assinada pelo já octogenário Jean Becker baseado num romance de Jean-Christophe Rufin, e situada durante e no pós Primeira Guerra Mundial. Ora, como tive o avô materno na Flandres nessa mesma época e ficaram por lhe ouvir muitas das histórias lá vividas, é natural a propensão para não perder a oportunidade de as pressentir por intermédio de filmes, que a adotem como cenário de fundo.

Quatro personagens têm protagonismo na história: um juiz, que quer evitar uma condenação à morte; um prisioneiro demasiado orgulhoso para pôr em causa os juízos apressados e sem fundamento; a amante que lhe deu um filho e espera tê-lo de volta na quinta em que se isola; e o cão de fidelidade exemplar, mesmo tendo transformado em massacre uma conjura de índole revolucionariamente pacifista.

Em pouco mais de uma hora e um quarto temos os horrores da guerra e seu contraponto amoroso na proposta de um artesão - manifestamente Becker nunca foi, nem será um Autor! -, incapaz de conferir ritmo ao que afinal se configura como simplista nos desequilibrados flash backs. O curioso foi constatar que, quase sempre Becker conseguiu um público complacente, capaz de lhe evitar o sabor do fracasso comercial. 


sábado, novembro 19, 2022

Miolo: de vez em quando lá vêm à baila os esoterismos!

 

15 de novembro de 2022

Fluorescente antes do 25 de abril, logo depois cresceu exponencialmente o interesse por alguns temas esotéricos, que ganhavam expressão em jornais a eles dedicados ou numa coleção de livros de capa negra da Europa-América, cujo dono, Francisco Lyon de Castro, tanto se prestigiara nos confrontos com o Estado Novo. O que poderia iludir alguns quanto à caução de credibilidade facultada por essa ilação.

Puro engano, claro: a exploração do sobrenatural estimulava a atávica ligação de muitos portugueses às crendices dos seus pais e avós, próprias de uma sociedade, que tardara a evoluir do campo para a proletarização nas cidades, e, sobretudo, desviava-os de uma Revolução, que se pretendia esfriar o mais rapidamente possível.

Acaso faltassem verbas para a divulgação dessas especulações em torno dos discos voadores ou das civilizações antigas, decerto agentes ligados a uma ativa embaixada em Sete Rios cuidariam de lhas facultar. E nem admirava que alguns desses livros sobre despertares de mágicos ou mundos esquecidos glosassem até à exaustão as teses, que a sociedade Ahnenerbe, lançada por Heinrich Himmler durante o regime nazi, esforçara-se por explorar. A busca do Santo Graal ou da Atlântida, os segredos dos cátaros de Montségur, o significado das runas escandinavas ou as origens da condição humana - fosse nas grutas do Cro-Magnon, fosse nas altitudes do Tibete -, procuravam justificar a existência dos míticos arianos de quem os alemães seriam os descendentes e que lhes justificariam os conceitos sobre a raça superior, perante a qual todas as outras deveriam ser escravizadas ou aniquiladas.

Não faltaram «cientistas» a apostarem a credibilidade em sucessivas expedições financiadas pelas SS, mesmo que algumas também implicassem missões de espionagem sob elas acobertadas. Otto Rahn, Bruno Beger, Ernst Schafer, Walther Wüst ou R.R. Schmidt foram reputados académicos que, por ambição, orgulho ou mera estupidez, quiseram contornar a verdade ditada pelos achados arqueológicos ou outros documentos, procurando dar-lhes leitura conforme aos interesses do regime que serviam sem escrúpulos. E não deixa de ser curiosa a persistência dalguns desses temas nos atuais ambientes «culturais» da extrema-direita, que procura adaptá-los à luz dos benefícios que deles crê passíveis de conseguir. 

quinta-feira, novembro 17, 2022

Miolo: o fugaz percurso de uma notável pintora indiana

 

14 de novembro de 2022

Aprender, aprender sempre! O imperativo mais se consolida com descobertas inesperadas e merecedoras de maior atenção. Como foi hoje o caso da vida e obra da pintora indiana Amrita Sher-Gil, que teve vida curta, entre 1913 e 1941, e justifica que a comparem a Frida Kahlo. Pelas origens mestiçadas - nasceu dos amores de um aristocrata sikh com uma cantora de ópera húngara de origem judaica -, pela assumida bissexualidade e, sobretudo a partir da viagem que fez em 1937 por todo o subcontinente indiano, a preocupação em reproduzir na tela o esforçado quotidiano dos mais pobres numa «joia da coroa britânica» que, em breve, se pressentia vir a deixar de o ser. Porque foi, igualmente, inequívoca, a simpatia, que nutriu pelo ascendente Partido do Congresso e pelas ideias do seu líder, o Mahatma Gandhi.

Tendo nascido verdadeiramente em Budapeste e passado algum tempo em Itália e Paris, deixou-se influenciar quer pelas obras dos mestres italianos, quer principalmente pelas de Cézanne e Gauguin, daí resultando obras, que se definem como próximas do pós-impressionismo.

Acresce ainda  o mistério em torno da sua morte precoce, ora explicada por uma peritonite resultante de um aborto, ora da violência assassina de um marido despeitado por se ver abundantemente traído. A mãe da pintora apostou fortemente nesta última hipótese, mas as premências da Segunda Guerra Mundial deixaram por aclarar um mistério, que se manteve até hoje.


quarta-feira, novembro 16, 2022

Miolo: Uma equívoca carícia no cinema francês

 

13 de novembro de 2022

Nunca perdi tempo a ver Emmanuelle, ou um dos seus muitos sucedâneos, com ou sem Sylvia Kristel embora, nesse mesmo ano de 1974, não tenha perdido O Último Tango em Paris, que agitava as discussões e os fantasmas sexuais da embotada sociedade portuguesa. E aproveitei agora para regressar momentaneamente a essa época de tantas cristalizações estilhaçadas com o documentário assinado por Clelia Cohen sobre o fenómeno, que define no título como La Plus Longue Caresse du Cinéma Français.

E temos assim a história de um produtor, que olhou para o sucesso do filme de Bertolucci e logo viu a oportunidade de, com poucos meios, enriquecer rapidamente, depressa mandando às malvas a intenção de dar-lhe uma caução intelectual mediante a contratação de Michel Piccoli para o papel do diplomata europeu a cumprir funções em Banguecoque. A escusa do prestigiado ator levou-o a substitui-lo por Alain Cuny que, apesar de estimável carreira, já a via a declinar para irreversível fim.

Curioso o facto de, para a tradução em filme do romance semiautobiográfico de Emmanuelle Arsan, o ambicioso produtor tenha recorrido a um fotógrafo, Just Jaeckin, que nunca passara das imagens paradas para as que teriam movimento, e complementado a arriscada opção com a escolha de Sylvia Kristel, uma modelo em início de carreira, incapaz de decorar duas linhas de texto. Ademais, ambos com personalidades púdicas, que se confessavam pouco à vontade nas ousadas cenas de nu e de sexo, que deveriam rodar.

O produto saído de tão ambígua feitura - tanto mais que a falta de dinheiro motivou ásperas reações em vários atores e técnicos na breve estadia tailandesa! - conseguiu tal sucesso comercial, que nele temos o lapidar exemplo de coisa sem préstimo convertido num fenómeno icónico e a contribuir involuntariamente para as grandes revoluções da época - o direito ao aborto e das mulheres a uma sexualidade realizada. Porque muitas confessariam na época nunca terem conhecido o orgasmo e procurarem-no doravante enquanto experiência capaz de lhes garantir dimensão enriquecida da sua condição feminina.

Foi nesse sentido que o filme mereceu a fama ulterior: se continua a desmerecer de com ele perder tempo necessário para coisas mais interessantes, não deixou de influenciar a alteração de valores, que dobraria os sinos por um tipo de sociedade em que, parafraseando Ary dos Santos, os filhos ainda eram feitos em ceroulas.

Perturbadora ainda a similitude de destinos entre Sylvia Kristel e Maria Schneider, que também ganhara equívoca reputação no filme de Bertolucci: ambas nascidas em 1952, pouco tempo se diferenciaram na morte - a francesa em 2011, a holandesa em 2012 - depois de estrondosamente fracassarem na carreira posterior em filmes de autor e de, mais ou menos explicitamente, se sentirem injustiçadas por terem-lhes usado o corpo para situações, que punham em causa os seus valores morais. Nesse sentido foram trágicas vítimas de um sistema de produção cinematográfico, que as tratou como qualquer chiclete... 

terça-feira, novembro 15, 2022

Coisas Vistas: entre um bocejo existencialista e os sonhos à margem do consumismo capitalista

 

Ateu sem preocupações metafísicas, nunca me interessaram os romances de Vergílio Ferreira apesar de, invariavelmente entediado, ter lido uns quantos, mormente Aparição, que quis agora recordar servindo-me do filme de Fernando Vendrell como muleta. Reconfirmei, assim, esse desinteresse pela obra e pelo existencialismo em geral - quer na forma lusa, quer na mais glosada, a francesa, com Sartre a servir de exceção, porque viria a sair das angústias umbiguistas para se comprometer nas lutas políticas do seu tempo.

Apesar de contar com um elenco de gente respeitável, mormente alguns atores vistos em tantas peças da saudosa Cornucópia (sobretudo enquanto a tal metafísica não levou Luís Miguel Cintra a dá-la como morta e enterrada!), o filme depressa incita  a prolongado bocejo: há a Évora parada no tempo nos anos 50 e as filhas do doutor Moura, que se frustram, ou vitimam, com as desilusões amorosas, mas Alberto Soares, o alter ego  do romancista ilude-se numa falsa irreverência que, focalizada nos grandes princípios, nada vê das contradições sociais à sua volta. Arrastando-se pelos corredores do liceu, pelos cafés e pelas salas de estar das casas para que vai sendo convidado, esse protagonista mantém esfíngica impassibilidade, mantendo-se roda mandada onde faria todo o sentido constituir-se em roda mandante...

 

Dos filmes, que ainda não chegaram a este cantinho ocidental, mas suscitam algum interesse, Stars at Noon de Claire Denis deverá ser um dos mais estranhos por ter alguma afinidade com um dos mais admiráveis filmes de David Lynch: Mulholland Drive.

Passado numa Nicarágua, que já quase nada tem da esperançosa revolução sandinista, focaliza-se numa protagonista, Trish, que procura vencer os constrangimentos da pandemia e voltar à realidade norte-americana, embora sem os imprescindíveis documentos para cruzar a respetiva fronteira. Na prática estamos perante a recriação da Alice de Lewis Carroll, caída numa caótica sucessão de sonhos fragmentários, com interlocutores estranhos, se não mesmo misteriosos, e com o dilema de, sozinha, fazer tangível o objetivo, mesmo  perdendo quem - Daniel -, entretanto, lhe serviu de suporte afetivo.

A exemplo da história do oitocentista inglês os personagens estão numa contínua azáfama sem consciência de quase não conseguirem sair do seu lugar, ao viverem na instabilidade de, a qualquer momento, tombarem em abismos porventura piores.

Embora mal-amado pela crítica francesa, que o deu como intragável, o filme de Claire Denis pode significar que o totalitário capitalismo ainda não conseguiu imiscuir-se nos nossos sonhos, por enquanto incólumes às mais exacerbadas regras do consumismo.