sábado, maio 18, 2024

Histórias Exemplares (XXVIII) - O Mikado enquanto programa de vida

 

Dos atuais escritores italianos Erri de Luca é quem sigo com maior interesse embora muito o distam dos tempos do militantismo mais ativo numa esquerda apostada em mudar a vida dos que  vendem a força do trabalho aos do costume

No romance mais recente estamos na fronteira entre a Itália e a Eslovénia, numa zona montanhosa procurada por um relojoeiro para, qual misantropo, devolver ordem ao caos da vida passada, seguindo as regras de um jogo adequado para avivar a destreza, a memória, a precisão.

Numa noite de invernia vê a tenda invadida por uma adolescente cigana, escapada da família, que a pretendia forçar ao casamento com um homem bem mais velho.

Dos diálogos entre ambos nasce uma cumplicidade que se prolonga para além dos tempos subsequentes, quando as cartas servem de veículo para prosseguir a função de mentor. Embora o caderno que dele chega à jovem, quando as missivas se interrompem, contenham uma confissão, que lhe causam - e a nós leitores que com ela nos identificamos! - uma perceção distinta da que tivéramos até então.

Evidente a coincidência entre o personagem do relojoeiro e o autor, que ajuda a explicar as mudanças, com que os anos foram moldando um autor quase ignorado entre nós.

terça-feira, maio 14, 2024

Histórias Exemplares (XXVII) - O centenário de nascimento de uma obra maior da literatura italiana

 

Esta foi a semana de comemoração do centenário de nascimento da escritora e atriz italiana Goliarda Sapienza que, em A Arte da Alegria criou o retrato de uma mulher livre e inconformista ao longo do século XX. Embora diferente de Elena Ferrante, a sua obra também contribui para caracterizar a condição feminina na bota transalpina.

Romance volumoso de quinhentas e tal páginas, mais do que esgotado entre nós, levou mais de dez anos a ser escrito e só foi publicado postumamente graças à persistência do último dos seus companheiros, o também escritor Angelo Pellegrino, que acaba de publicar uma versão pessoal sobre o seu crepúsculo.

Só assim acedemos às vicissitudes libertinas da protagonista, Modesta, mediante uma descomprometida opção estilística, que nada deve a um cânone preciso.

A iniciar a história (semiautobiográfica) há a violação de Modesta pelo pai, aproveitando Goliarda para recorrer à sua própria experiência (não se sabe se real se fantasmática), que procurara resolver pela psicanálise. A bissexualidade da personagem também muito deve ao fascínio sempre assumido pela autora em relação às mulheres.

Sobram bons motivos para voltarmos a uma obra mal conhecida, que merece encómios exaltados nalguns dos seus admiradores. 

domingo, maio 12, 2024

Apontamentos Cinéfilos (IX): Um ateu a fazer figas pelo sucesso de um cruzado

 

Numa entrevista Ingmar Bergman confessava a importância de se pôr em causa passada a fronteira dos 40 anos de idade, questionando-se sobre quanto fizera de perdurável até então.

O Sétimo Selo é um dos filmes, que resultou dessa reflexão e focalizado em temas para ele tão fundamentais quanto o eram o significado de Deus ou a inevitabilidade da morte.

Curiosamente, eu que andava de fraldas, quando o filme se estreou em 1957, sempre o tomei como um dos mais entusiasmantes de quantos vi apesar de saber-me empedernido ateu e, por isso mesmo, ciente da inexistência de um qualquer deus, só estranhando ver tanta gente inteligente rendida a tão absurda hipótese. Como compreendê-lo se a Ciência dá fartas respostas para quanto era incompreensível no tempo do cavaleiro Antonius Block?

Resta a questão da morte e de algo prosseguir num mirífico além. Em tempos alimentei alguma ansiedade por saber-me condenado ao Nada. Até sentir como muito natural a resposta dada por Saramago no documentário do Miguel Gonçalves Mendes, com o vento de Lanzarote a fazer-lhe esvoaçar as melenas: hoje está-se cá, amanhã deixa de se estar. E não há nenhum drama por tal suceder!

Temos, porém, o filme, objeto maravilhoso enquanto proposta estética com Block e seu escudeiro a percorrerem a devastada paisagem em que a peste vai dizimando figurantes. Ainda não era Sven Nykvist a assumir a direção da fotografia, mas Gunnar Fischer fez trabalho exemplar. E há essa tentativa de se enganar a Maldita numa partida de xadrez, quando é incontornável a rendição que a ela todos acabamos por manifestar... 

terça-feira, maio 07, 2024

Histórias Exemplares (XXVI) - O outro lado do “sonho”

 

O amrican way of life ainda é sonho suficientemente atrativo para milhares de latino-americanos partirem ao assalto do Rio Grande: mas, nos anos sessenta, quando foi uma das primeiras mulheres a lecionarem na Universidade de Detroit na mesma altura em que a cidade melhor personificava esse tal sonho fundamentado na pujança da sua indústria automóvel, Joyce Carol Oates dedicou os primeiros romances ao tema, que permaneceria latente em toda a sua obra: não existe coincidência entre as promessas de uma sociedade ferozmente capitalista e o que ela remunera aos que a fazem funcionar. Daí que Joyce não tenha ficado surpreendida com a revolução de 1967, quando Detroit ficou a ferro e fogo por causa da desilusão dos que se sentiram enganados.

Them, que publicou em 1969, é um dos títulos mais interessantes dessa época em que demonstrou a impossibilidade da classe trabalhadora alcançar o paraíso. 

Histórias Exemplares (XXV) - Os malefícios do turismo

 

Em poucos dias surgem várias notícias sobre protestos de diversas comunidades  - nas Canárias, no Japão - contra os turistas, que as visitam em invasivas hordas ruidosas. Tanto mais que os benefícios dessa atividade distribuem-se muito desigualmente por quem as integra. Daí que cresça, em diferentes latitudes, uma tendência para limitar o acesso aos que pensam alcançá-las.

Uma das imagens mais impressionantes do rasto deixado por esses visitantes nos sítios por onde passam é a do video rodado por sherpas sobre as montanhas de lixo acumuladas nos Himalaias. É que, chegados ao cume e tiradas as fotografias para mostrarem aos amigos das redes sociais, os “alpinistas” só pensam em livrar-se do peso do que carregaram até ao cume - mormente as garrafas de oxigénio! - e deixá-las no caminho de regresso...

Os que venham atrás, que aguentem com o incómodo de procurarem melhor sítio onde pousarem os pés...

segunda-feira, maio 06, 2024

Apontamentos Cinéfilos (VIII): Paixão, Margarida Gil, 2010

 

O tema tinha motivos para me entusiasmar: pode recriar-se o desejo adolescente de um amor fusional? E havia duas cauções complementares: a de ter Maria Velho da Costa a colaborar nos diálogos e dois muito estimáveis atores  - Ana Brandão e Carloto Cotta - a protagonizarem uma história de sequestro capaz de dar explicação plausível para o síndrome de Estocolmo.

Confesso ter gostado de Paixão sem me entusiasmar o suficiente para o reservar no compartimento cerebral das obras memoráveis. Porque, como pressupõe Luísa Costa Gomes, tudo nele é inesperado, nada sucedendo de acordo com os estereótipos a que os modelos mainstream nos habituaram e, por isso, nos vemos abalados com o imperativo de pensarmos pela nossa cabeça (olha, que chatice!).

Será que o problema com o filme não está nele - obra mais do que meritória! - mas na preguiça mental imposta por horas e horas a ver coisas bem menos interessantes?

Essa é uma das questões sugeridas por este tempo presente, que dispersa-nos a atenção por tantos estímulos em simultâneo, que não dedicamos a necessária concentração para quanto mereceria ponderação demorada. Porque a história desta cantora lírica a viver um luto recente tem a ver com o amor, a ausência do(s) Outro(s) e com a falta de explicação para tudo quanto torna imprevisíveis os dias e os condiciona de uma forma, que não tem reversibilidade tangível. E também sobre o vazio interior de quem, vendo-se involuntário foco da obsessão alheia, nela julga descobrir a resposta para dar sentido ao que não andava a ter até então.