quinta-feira, outubro 31, 2019

Apontamentos nas margens das notícias: Um Mahler passado ao lado e um indispensável Kurosawa


Neste domingo anuncia-se no CCB a interpretação da Nona Sinfonia de Mahler a cargo da Orquestra Sinfónica Portuguesa. Eis o que seria um excelente concerto não fosse  Joana Carneiro a dirigi-lo. E a verdade manda reconhecer que a maestrina consegue prejudicar a fruição dos melómanos com os seus gestos grotescos em palco, dando pulos em cima do estrado, distraindo-nos dos sons para os substituir pela preocupação de  ver um dos saltos fazê-la assentar os pés fora do sítio e acabar por dar valente trambolhão no palco.
De quem dirige uma orquestra espera-se o conhecimento profundo da peça, mas também a contenção necessária para quase fazer-se despercebido. Claudio Abbado  foi, a tal respeito, o exemplo de excelência. A bitola de perfeição relativamente ao qual todos os outros se sujeitam. E em Portugal os que, a grande distância, se aproximam é Pedro Carneiro, acrescentando à atuação a evidente cumplicidade com os jovens intérpretes da sua Orquestra de Câmara, Pedro Neves com trabalho exemplar à frente da Metropolitana e, sobretudo, Dinis Sousa, que vem acompanhando como assistente o notável Sir Eliot Gardiner.
Fosse qualquer deles a incumbir-se da direção da Nona de Mahler e há muito teria adquirido bilhetes para o concerto de domingo. Como não é o caso fiquemo-nos com a gravação da peça a cargo do grande maestro milanês à frente da Orquestra que fundou em Lucerna.
Noutra vertente o que se torna imprescindível rever é «Yojimbo» de Akira Kurosawa, que passa esta noite na sala Félix Ribeiro da Cinemateca pelas 21h30. Realizado em 1961, é um dos grandes clássicos dos filmes com samurais com o protagonista a vender os serviços de mercenário a dois grupos inimigos em função do que lhe impõem a noção do interesse, primeiro, e do sentido de justiça depois.
Quando, cinco anos depois, Sergio Leone lançou a moda dos western spaghetti, pegou nesta mesma história adaptando-a aos cenários do Oeste Selvagem e fazendo-a interpretar por Clint Eastwood e Gian Maria Volonté,
Quem não gostou da habilidade foi o mestre japonês, que meteu um processo a Leone acusando-o de plágio.

Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande : Da formulação teórica à comprovação prática da existência de buracos negros


Um buraco negro não é um objeto, nem tão pouco uma brecha no espaço. É antes uma região de fronteira para lá da qual nada pode escapar.
Se tivesse olhado para a sua Teoria da Relatividade Geral, sem preconceitos quanto ao que a razão lhe ditaria, Albert Einstein poderia ter concluído que a deformação do espaço-tempo suscitada pelo colapso de uma estrela com uma massa superior a pelo menos três vezes a do sol criaria uma singularidade no centro de um buraco negro, donde nem sequer a luz conseguiria ser vislumbrada. Ele quedara-se pela genial conclusão da curvatura no espaço à volta de um objeto celeste como efeito da sua massa, concluindo ser a gravitação terrestre o efeito prático dessa deformação causada pela Terra. Não teve o discernimento de Karl Schwarzschild, autor dos cálculos, que transformaram em evidência teórica o que viriam a chamar-se os buracos negros. Falecido prematuramente aos 42 anos, vitimado por uma doença autoimune, onde o teria conduzido o brilhantismo que o levara, a partir dos cálculos das trajetórias de obus observadas nos campos de batalha da Primeira Guerra, a conclusões só confirmadas nas décadas seguintes? É que entre 1916, data do infausto acontecimento e 1931, quando Subrahmanyan Chandrasekhar observou não existirem soluções estáveis para sistemas com massas acima de um determinado limite, passaram quinze anos, a que se acrescentariam mais oito até Oppenheimer e Volkoff publicarem um trabalho seminal com os cálculos do que sucederia com uma estrela de neutrões a colapsar.
Na altura essa hipotético fenómeno celeste ainda não tinha o nome por que viria a ser conhecido a partir dos anos 60, quando John Wheeler o inventou numa altura em que começava a generalizar-se o consenso científico quanto à sua formação na sequência da implosão de estrelas maciças e núcleos metálicos muito densos. Mas para tal também havia contribuído a descoberta de um sinal oriundo da Via Láctea, que os investigadores do Laboratório Bell não souberam, de imediato, explicar qual a sua origem. Seria da análise do espectro das ondas então recebidas, mormente na frequência dos raios X, que cairia por terra o mito de existirem amplas regiões do Universo muito tranquilas, onde os equilíbrios entre os respetivos sistemas estelares  se afiguravam estáveis. Ora as novas ferramentas de Astronomia assinalaram inaudita atividade em todas as direções para as quais os cientistas virassem os telescópios. Ademais surpreendiam-se com a percentagem significativa de sistemas binários com duas estrelas a rodarem em torno uma da outra, Foram essas conclusões a  propiciarem a transição da fase de formulação teórica da existência dos buracos negros para a sua comprovação através de provas científicas.

quarta-feira, outubro 30, 2019

Auditórios: recordar Georges Brassens no aniversário da sua morte

Diário de Leitura: «Discursos» de Mark Twain


O grande acontecimento editorial deste mês foi o lançamento dos «Discursos» de Mark Twain pela Tinta-da-china, cuja leitura substitui eficazmente os mais potentes antidepressivos a quem for propenso à melancolia. De facto poderíamos pensar que estes textos do autor de «Tom Sawyer» teriam menos interesse por se destinarem a ocasiões com alguma solenidade, mas isso seria esquecer que a vocação para a ironia era tal, que o riso (ainda por cima inteligente!) vem inesperadamente ao nosso encontro, pondo-nos a pensar na capacidade de emergirem as vertentes divertidas de estórias quase banais.

O livro faculta ainda outra surpresa: dar conta de ainda estar vivo o excelente ator de composição, que foi Hal Holbrook, mesmo que com provectos 94 anos. Se dele lembramos inúmeros papéis secundários em filmes ou séries televisivas onde a sua presença sempre marcou a diferença, desconheciamos-lhe o percurso no teatro, onde tomou os textos de Mark Twain como pretexto para os seus monólogos aparentados ao que viria depois a consagrar-se como stand by comedy. Ler-lhe na Introdução os fundamentos da construção desses espetáculos constitui um bónus complementar ao que virá a seguir. Até porque é dele que ficamos a saber a falsidade de todas as gravações profusamente difundidas da voz do escritor e mais não são do que réplicas a cargo dos seus imitadores. Ou como Twain conseguia aparentar discursos e outras intervenções como se estivesse a improvisar naquele momento, mas investia numa trabalhosa preparação capaz de incluir vários textos possíveis, depois escolhidos de acordo com as circunstâncias.
Num dos mais saborosos textos do livro lemos o caso de um infeliz orador, que procurava imitá-lo nessa sugestão de oratória criada no próprio momento. Muito menos dotado, viu a plateia abrir clareiras quase no início da preleção quando, inadvertidamente, o porteiro apareceu a solicitar a ida de uma senhora aos bastidores para apoiar o marido acabado de sofrer um acidente. Várias espectadoras aproveitaram a oportunidade para saírem como se fossem elas a procurada. E logo as remanescentes as imitaram, quando o mesmo porteiro voltou a aparecer minutos depois dizendo ter-se enganado no nome anteriormente anunciado tratando-se de um outro. Razão para que, à falta de quem o ouvisse, a conferência logo ali acabasse.
Os textos de Twain seguem esse estilo: de situações anódinas retirar ilações com um inequívoco sentido satírico, senão mesmo ideologicamente orientado para as causas, que o motivavam, a começar pela urgência no combate ao racismo.

Diário das Imagens em Movimento: «Inferno no Alto Mar» de Richard Lester (1974)


Nos tempos subsequentes à Revolução de Abril este não era propriamente um filme fadado para merecer grande atenção já que a prioridade dos espectadores orientou-se para um tipo de cinema mais político ou para o porno que, com o fim da censura, viveu então a época dourada. E, no entanto, este filme bem merecia melhor atenção dado vir assinado por um americano radicado na Grã-Bretanha, conhecido pelos filmes com os Beatles na década anterior. Realizador versátil, com propensão para o burlesco, Richard Lester não enjeitava introduzir momentos de experimentação no meio da intriga convencional, nem desviar «Inferno no Alto Mar» das características do filme-catástrofe para o transformar num thriller eficiente.
A história passa-se em grande parte no paquete «Britannic», durante uma viagem no oceano Atlântico com 1200 passageiros a bordo. Em terra o diretor da empresa armadora recebe uma chamada de alguém que se identifica como Juggernaut para exigir meio milhão de libras no prazo de vinte e duas horas se quiser evitar a explosão de diversas cargas de TNT espalhadas pelo navio. E, para provar que não está a brincar faz explodir uma das cargas na chaminé. O plano do rosto de Omar Sharif (o comandante do navio) nesse momento merece ser referenciado como antológico.
Acaso a meteorologia o permitisse a opção seria a de arrear as baleeiras transferindo para elas os passageiros. Só que as condições bravias do mar desaconselham-no liminarmente. A alternativa será a de enviar para bordo uma equipa em desminagem de engenhos explosivos liderada por Fallon (Richard Harris) e incluindo Charlie (David Hemmings), que morre ao tentar desativar um deles. Outro plano memorável é o dos dois homens em fundo totalmente vermelho, quando preparam a operação.
As horas vão passando e Fallon, mesmo com a ajuda à distância do seu mentor, Sid Buckland (Freddie Jones), tarda em resolver o problema. O que incita o comandante a reconsiderar a primeira opção. Eis que, subitamente, a polícia consegue compreender a coincidência identitária entre Buckland e Juggernaut, querendo força-lo a dar as orientações adequadas para que Fallon elimine o perigo à beira dele se manifestar. Compreendendo que o antigo amigo lhe está a dar as indicações erradas de forma a precipitar a explosão, Fallon age a contrario salvando o navio e os passageiros.
A ideia para o argumento baseou-se num caso muito semelhante ocorrido com o «Queen Elizabeth 2» em 1972, e começou por ter à frente da rodagem Bryan Forbes e, depois, Don Medford.
Richard Lester que estava em Espanha a concluir os dois filmes sobre «Os Três Mosqueteiros» foi contratado em desespero de causa e tendo pouquíssimo tempo para o concretizar. Mas isso não o impediu de, sentindo quão frágil era o argumento, logo o alterar. E, em seis semanas, tinha o filme pronto para passar à pós-produção.
Rodado a bordo do navio soviético «Maxim Gorky», quando acabara de mudar de dono - anteriormente era o alemão «Hamburg» - o súbito aumento do preço do petróleo fez com que o armador perdesse dinheiro com esse primeiro contrato.  Nas cenas ali filmadas Lester aproveitou para dar testemunho - quase ao jeito de documentário! - do quotidiano dos passageiros nessas experiências de lazer, incluindo os enjoos impeditivos de saborear as refeições ou os bailes de máscaras no salão principal.
Cumprindo o que dele se esperava, mormente com a salvação dos «bons» e o castigo do «vilão de serviço», Lester não deixou de inserir momentos divertidos, que contrabalançassem o suspense motivado pela iminência das explosões. Denotava, assim, um talento que a decadência do cinema inglês viria a desaproveitar condenando-o a incaracterística reciclagem nas produções televisivas.

terça-feira, outubro 29, 2019

Auditórios: Rodrigo Amado e Chris Corsano ao vivo em Moscovo em Maio

Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande : Quando ficou comprovada a existência de buracos negros


Hoje não há quem, na comunidade científica, conteste a existência dos buracos negros capazes de absorverem tudo (gases, poeiras, até estrelas!), que lhes passem ao alcance. Mas Einstein negava-lhes a existência não aceitando que a Natureza pudesse incluir tais fenómenos, que se revelam como dos mais misteriosos do Universo e são dos poucos em que a realidade ultrapassa seguramente o que a ficção sobre eles congeminou. E, de facto, não faltam filmes nem romances de ficção científica, que os tomaram como foco das suas histórias.
Invisíveis - porque absorvem toda a luz, que para eles seja atraída - só nos anos 70 começou a congeminar-se a tecnologia necessária para comprovar a sua existência. Foi por essa altura que Rainer Weiss e outros cientistas propuseram a sua deteção através de interferómetros laser capazes de medirem as ondas gravitacionais resultantes da curvatura do espaço-tempo e oriundas das profundezas do espaço cósmico tal qual as descrevera o referido Einstein na Teoria Geral da Relatividade. Viajando à velocidade da luz, essas ondas transportam energia na forma de radiação gravitacional e resultariam da colisão entre objetos maciços.
Os Observatórios de Ondas Gravitacionais por interferómetros laser (LIGO) foram instalados já neste século, um no Estado de Washington e o outro na Louisiana, distando um do outro mais de três mil quilómetros. Rainer Weiss esteve no projeto, que coliderou com Kip Thorne e Ronald Drever. Não tivesse este último falecido nesse mesmo ano e juntar-se-ia aos dois colegas e a Barry Barish, um dos principais investigadores do LIGO, na receção do Nobel da Física de 2017.
Começando a operar em 2010 com o foco nos sistemas binários, onde pudessem detetar-se as esperadas colisões, os Observatórios viveram um momento exaltante em 14 de setembro de 2015, quando a primeira onda gravitacional foi identificada em ambos simultaneamente. Durando menos de um segundo foi como se ouvisse um pequeno bip, que ficou registado nos gráficos continuamente a serem alimentados a partir dos respetivos equipamentos. Seguiram-se semanas de cálculos até que, em fevereiro de 2016, foi anunciado ter-se-tratado do testemunho cósmico de uma colisão entre dois buracos negros a 1,2 mil milhões de anos-luz da Terra e originando um outro com a massa somada dos que lhe tinham estado na génese.
Desde essa primeira observação outras ondas gravitacionais têm vindo a ser rastreadas pelos dois observatórios LIGO. Nesta altura os cientistas tentam compreender que importância têm esses buracos negros no instável equilíbrio do Universo em que vivemos.

segunda-feira, outubro 28, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Perfume e Violência» de Paul Wendkos (1957)


Este terá sido um dos melhores exemplos de como Jayne Mansfield era bem mais do que a loira burra de muitos títulos dos anos seguintes, convertendo-a numa lamentável caricatura de si mesma. Demonstra, igualmente, o quanto Paul Wendkos terá sido desaproveitado no cinema norte-americano, depressa empurrado para a televisão, onde assinou episódios em séries irrelevantes. Aqui, com este «The Burglar», a sua primeira longa-metragem, que ele próprio montou, deteta-se o quanto aprendeu com as obras do mestre Hitchcock e, sobretudo, com as de Orson Welles, criando um dos melhores filmes negros dos anos 50.
O argumento é de David Goodis, que adaptou o próprio romance, nele contendo muitos dos elementos, que fundamentam os cânones do género: começa por haver o roubo de um valioso colar, mas os quatro envolvidos no golpe logo começam a alimentar as tensões entre si. Não só porque Gladden (Jayne Mansfield) suscita o assédio alarve de um dos cúmplices, mas sobretudo por divergirem entre si quanto à forma de se libertarem da peça de joalharia: uns querem-na vender mais rapidamente a um intermediário, mesmo recebendo metade do que vale, enquanto Nat (Dan Duryea) pretende deixar a poeira assentar e, quando a situação se mostrar mais calma, negocia-la pelo valor mais elevado que conseguirem.
Surge então o outro elemento comum a muitos filmes do género: o polícia corrupto, que pretende ficar com o produto do roubo para si. Para tal seduz Gladden, quando ela é enviada para o recato de Atlantic City, e incumbe uma comparsa de fazer o mesmo com Nat.
Tudo tende e complicar-se quando este descobre esse plano e decide acorrer para junto da rapariga que, anos antes, se comprometera a proteger, quando ela era ainda uma criança, mas se tornara entretanto numa mulher carecida de afetos. Pelo caminho são travados por uma operação de stop da polícia e identificados, matando um dos agentes, mas também morrendo um dos membros da quadrilha.
Os acontecimentos aceleram-se a partir daí e, lembrando a cena da barraca dos espelhos no weelesiano «A Dama de Xangai», o desenlace recorre a uma barraca de horrores e conclui-se numa bancada circense.
Como seria expectável nos filmes desta época os delinquentes, incluindo o polícia corrupto, morrem ou são desmascarados. Mas a forma como Wendkos explora a intriga evidencia o quanto prometia muito mais do que aos donos dos estúdios lhe permitiram fazer.

domingo, outubro 27, 2019

Diário de Leituras: «O senhor Breton e a entrevista» de Gonçalo M. Tavares


Continuo a ter grandes dificuldades na leitura dos romances daquele que é um dos mais celebrados escritores portugueses pela remanescente crítica, que se oficia em espaços cada vez mais raros. Reconheço-lhe o talento, adivinho-lhe a preocupação em tudo questionar, quer nas formas, quer nos conteúdos, solicitando-nos para filosofares sem nos propiciar propriamente as chaves de entendimento para que neles vejamos facilitado o esforço e fica no final um certo amargo de boca, porque quase nos sentimos culpabilizados por concluirmos pela futilidade do esforço investido na decifração das páginas acabadas de ler.

Publicado em 2008 este romance tem dez capítulos, cada um deles com uma pergunta endereçada ao papa do surrealismo. Mas quem lhas dirige vai formulando hipóteses, que partilha com o desconcertado leitor. Por exemplo no primeiro capítulo temos a noite a conter dois lados, um dentro de casa (o da tranquilidade e do esperado) e outro fora dela (o do medo e da estranheza). Ou os homens que se erguem e não são  a mesma coisa que os derrubados.
No segundo capítulo conclui-se pela existência de duas poesias, uma com tendência para a paisagem, a outra disposta a contribuir para o movimento futuro das coisas. Concluindo-se que nunca passou fome, quem proclama alimentar-se de poesia.
No terceiro temos o senhor Breton a concluir para si próprio quanto mais fácil seria a realidade se se visse poupado a perguntas  Tudo seria, então, muito mais simples. Mas teria sempre de contar com a  outra metade: a da reflexão.
No quarto temos um escritor a acreditar mais na palavra deus do que no Deus propriamente dito.
No quinto a pergunta retoma questão aparentemente resolvida em capítulo anterior: poderão os versos dos grandes poetas alimentar um homem durante alguns dias?
A estética surge noutra questão, quando se considera importante a compreensão de não surgirem ideias promissoras na cabeça só por se usar um chapéu bonito. Até porque a estética é assunto que pouco dialoga com o raciocínio.
Volta então a questão que parece percorrer todo o romance: poderá um livro conduzir um cego no meio de uma cidade cheia de trânsito? Poderão os livros funcionar como lâmpadas, quando pousados na mesa de um quarto escuro sem eletricidade?
Convenhamos que algumas questões podem revelar pertinência, mas a chegada à última página constitui um certo alívio.

sábado, outubro 26, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Happy end» de Michael Haneke (2017)


Há realizadores particularmente talhados para proporem filmes, que nos incomodam, nos inquietam, nos assombram. O que nada tem de negativo, porque o pior a esperar de uma proposta cinematográfica é ela deixar-nos indiferentes e ser prontamente esquecida. As fitas chiclete não são propriamente aquelas que devamos valorizar.
Somos sacudidos pela abordagem dos reversos da sociedade contemporânea, ou seja dos que vivem clandestinos por trás das tranquilizadoras aparências, mas nelas influem muitas vezes na forma de inesperadas explosões catárticas.
Nos filmes de Haneke existem sempre sinais de agressividade à volta dos personagens. No caso concreto de «Happy End» damos com sindicatos em greve, inspetores do trabalho a suspeitarem de práticas crapulosas, condutores apressados a buzinarem e cães agressivos, capazes de morderem por desconhecida razão. Mas, pior ainda, testemunhamos alguns dias na vida de uma família disfuncional, onde o conforto burguês não serve de consolo para a falta de amor e de comunicação.
O anfitrião - um dos derradeiros papéis de Trintignant de quem um dia destes ouvimos a notícia do óbito! - tem a consciência da progressiva senilidade e procura uma «alma grande», que o ajude a abreviar o desenlace. Nesse sentido Georges Laurent assegura a continuidade do personagem de «Amor», filme anterior de Haneke em que matava a esposa e depois se suicidava.
Há Eve, a neta de 13 anos, assumida pela espantosa Fantine Harduin, que conseguira o crime perfeito ao envenenar a detestada mãe e mudava-se para a casa familiar do lado paterno, detetando no progenitor uma singular deslealdade para com a nova esposa, daí temendo ver-se-condenada a um lar da assistência pública.
A tia, interpretada por Isabelle Hupert, gere uma empresa de construção em crise devido à progressiva loucura do filho, decididamente inepto para continuar a exercer cargo de direção. E, por isso mesmo, incapaz de vir a assegurar-lhe a sucessão.
São muitos os dramas e os segredos familiares não faltando a referência aos refugiados até por situar-se toda a história na região de Calais. E todos - quer os burgueses, quer os candidatos à travessia da Mancha - continuam num precário impasse por Haneke escolher um final aberto dando ao espectador a escolha do que a todos a seguir sucederia. Pode ser happy se assim o desejar, mas a opção contrária também não soa desajustada do que ficou para trás...