sábado, maio 29, 2021

Uma arianização fracassada

 

Na fotografia a antropóloga belga Bessora está a conversar com Peter Ammermann, que, em 1948, foi uma das oitenta e três crianças recolhidas na Alemanha em ruínas por uma Associação de beneficência sul-africana, que pretendia acrescentar a essas mais dez mil, indiscutivelmente arianas, para melhorarem o tom da pele da população daquele país, no mesmo ano em que os afrikanders ganharam as eleições e assim levaram por diante as promessas de instituírem o apartheid  e proibirem o Partido Comunista. Que o projeto ficou-se pela primeira fase não obsta a que muitas dessas crianças se sujeitassem a maus tratos e a um doutrinamento muito semelhante ao que haviam conhecido antes da derrota definitiva de Hitler.

Peter relatou a Bessora a experiência traumática, que o fez involuntário porta-voz dos que se sentiram violados nos direitos de permanecerem no seu espaço natural e nele crescerem. Na África do Sul converteram-se em peças indiferenciadas de uma experiência social, que os obrigou a questionarem-se toda a vida sobre a sua identidade.

No romance agora publicado - Les Orphelins na editora JC Lattès - Bessora ficciona a história para a tornar mais abrangente a outras ouvidas a quem passou pela mesma experiência e por isso imaginou o relato que o velho Wolf, a recuperar de uma tentativa de assassinato, faz à sua irmã gémea sobre o sucedido setenta anos antes, quando apenas contava oito anos e se viu numa terra onde não conhecia ninguém, nem nela encontrava quem lhe prodigalizasse o mínimo afeto.

Avulta o sectarismo da comunidade para a qual fora enviado e de como se tornara tão difícil reencontrar a verdadeira identidade, muito diferente daquela que tinham pretendido impor-lhe.

Passados já alguns anos sobre a sua irreversível obsolescência o regime do apartheid, ele continua a revelar-nos facetas, que nos eram completamente desconhecidas...

A redenção através da redescoberta do Amor em «No Coração da Escuridão» de Paul Schrader (2017)

 

Há um homem acossado por incurável sentimento de culpa: ao respeitar a tradição militar da família mandara o único filho alistar-se no exército e ele morrera seis meses depois no Iraque. O casamento não resistira a essa perda irreparável.

A redenção encontrara-a momentaneamente na assumpção do cargo de pastor de uma igreja batista à beira de comemorar duzentos e cinquenta anos. Mas há em Toller a angústia sobre os desígnios de Deus, quando não encontra resposta para o sofrimento a si reservado, ou para o dos outros, que não encontram consolo nas suas prédicas ambíguas?

A expressão de íntima aflição ainda mais se agrava perante o dilema por que passa um casal de ambientalistas da sua congregação: Mary engravidou mas Michael quer que aborte por ser uma irresponsabilidade trazer uma criança a este mundo condenado a converter-se numa distopia apocalítica por culpa das indústrias poluentes. E embora vá contra os princípios, que deveria defender, como pode ele discordar do rapaz quando o próprio governo trumpista negava as evidências das alterações climáticas? Ou como conciliar a função pascal com a consciência de ter o principal industrial da região como mecenas a financiar a comemoração da sua igreja sendo evidente que a fortuna lhe proviera da extração de petróleo e da produção de fertilizantes?

Há ainda a consciência da saúde lhe estar a minguar: um cancro mina-o e o único «remédio», que lhe alivia as dores é o álcool.

Às tantas - sobretudo após o suicídio de Michael! - Toller toma para si a tarefa de levar até ao fim o ato sacrificial, que ele planeara através da explosão de um colete a envergar debaixo das vestes. Olhamos para Ethan Hawke e vemo-lo a assumir a reencarnação de Travis Bickle, que o mesmo Paul Schrader  inventara quarenta anos antes para Scorcese rodar o seu Taxi Driver. Mas os anos adoçaram o coração do realizador, que da escuridão do título do filme fez emergir a luminosa redenção através da redescoberta do amor.

Num certo sentido o happy end roseou a história taciturna. Mas, neste momento específico da vida não ando eu mesmo à procura de que ele também me apareça na esquina ilustrativa deste período difícil? 

terça-feira, maio 25, 2021

Lembrar um ausente, celebrar os persistentes

 

Hoje seria o 79º aniversário do José Mário Branco. Por isso ouvi-lhe a voz no programa matinal da Antena 2 onde houve quem dissesse demasiado cedo a sua definitiva partida há ano e meio. E, de facto, há pessoas que, mesmo à beira dos oitentas, ainda mostravam fulgor criativo para nos poderem ainda surpreender. E o José Mário era um desses casos...

Menos significado assume para mim o 45º aniversário do teatro do Grupo 4 na Praça de Espanha, quando aí lançou uma peça que deu, então, bastante brado: O Círculo de Giz Caucasiano. Provavelmente por andar embarcado, passou-me ao lado, mas, mesmo nas férias entre as ausências, as prioridades eram então para outros grupos cujas abordagens nos pareciam menos académicas que as assumidas por João Lourenço. As da Barraca, da Comuna, da Cornucópia, do Bando e outros grupos que tais. Até porque não víamos desfeita essa ideia sempre que nos sentávamos na plateia do barracão do lado nascente da Praça de Espanha: gostávamos dos textos, apreciávamos a competência da encenação e das interpretações mas ... não saímos de lá surpreendidos. E assim tem sido sempre, mesmo após o rebranding para Novo Teatro e a mudança para o lado contrário da praça. Mas, pelo esforço, pela persistência e pela coerência, a companhia está de parabéns...

segunda-feira, maio 24, 2021

A Eslovénia num dos romances de Hemingway

 

Revisitar obras lidas há muitos anos comporta surpresas, por nelas encontrar afinidades então desconhecidas. Por exemplo boa parte de O Adeus às Armas, porventura um dos romances que mais apreciei de Ernest Hemingway, passa-se no vale do rio Socha e das adjacentes montanhas Kolovrat, territórios de um país, a Eslovénia, que é também o de quem connosco criaram laços familiares com o enlace dos nossos filhos.

Pessoas carinhosas, o Drago e a Polonca, ou os filhos Klemen ou a Manca, têm-nos proporcionado relatos sobre os tempos de Tito, mas não me lembro de com eles abordar o passado mais remoto, o de há mais de um século, quando esses cenários lindíssimos foram também os de uma guerra intensa entre italianos e austro-húngaros com muitos mortos e feridos a empararem de sangue aquelas terras.

Hemingway, que por lá andou como condutor de ambulâncias ao serviço da Cruz Vermelha, chegou a ficar ferido com os estilhaços de morteiros oriundos da frente contrária e que o apanharam quando se julgava razoavelmente recatado nas linhas mais recuadas das trincheiras. E tanto bastou para dar por finda a experiência, nela encontrando matéria bastante para elaborar o romance sobre os amores de um oficial norte-americano e uma enfermeira inglesa e, sobretudo, quanto ao carácter monstruoso da guerra, que justificaria doravante o seu posicionamento pacifista.

Octogenarices

 

Oitenta anos de Bob Dylan e oitenta anos de «O Mundo a Seus Pés» de Orson Welles.

Para escândalo de muitos, o primeiro pouco me diz, muito embora há meio século tenha-o acreditado como oráculo de tempos que estavam a mudar. 

Reconheço que sim, que mudaram. Mas não de acordo com os ideais utópicos, que eram então os meus. E, quando o vi apóstolo de ideais religiosos, que me eram estranhos, ou o soube acionista de empresas de armamento, o senhor Zimmermann transitou para o lado dos que me merecem indiferença. Sem deixar de entender escandaloso o Nobel, que ficaria muito melhor entregue a Don DeLillo, a Joyce Carol Oates ou a Philip Roth.

Quanto ao filme de Orson Welles é outra a reação. Revejo-o sempre com um enorme prazer, aprendo imenso sobre cinema em muitos dos seus planos e espanto-me como um miúdo de vinte e cinco anos fez obra de tal grandeza. Celebre-se, pois, o bulímico realizador, remeta-se o pífio bardo para a sua mais do que ambígua insignificância.