sábado, janeiro 30, 2021

(G) O Chapéu de Vermeer

 

De que sorri a rapariga, que Vermeer pintou em 1657, na condição de interlocutora do oficial que, nem para a ocasião, se separou do imponente chapéu em pele de castor? Estará a ouvir-lhe os planos para um futuro promissor a dois, quando aceder a entregar-se-lhe depois de concluído o noivado? Será que ele invoca a possibilidade de zarparem para outras terras num dos navios da Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC), então responsável pelas fortunas exponenciais angariadas pelos comerciantes de uma república emancipada dos espanhóis sete décadas antes? Ou, como sugerem, espíritos mais maliciosos, a mão aberta da jovem é a de uma meretriz a solicitar o pagamento do serviço para que, a seguir, se disponibilizará?

Curioso como um pequeno quadro, com meio metro de altura e pouco menos de largura, tem suscitado tantas teorias. Há quem lhe sublinhe as opções estéticas com a luz a provir da janela aberta, iluminando o rosto da personagem feminina e deixando-nos na sombra as costas do oficial. Ou as sucessivas linhas de fuga a convergirem-lhe no chapéu.

A análise mais detalhada foi a de Timothy Brook, que viu no quadro múltiplas referências ao que, então, se passava nas sete províncias dos Países Baixos: a expansão marítima para a imposição do primeiro esforço bem sucedido de globalização, a afirmação de um capitalismo financeiro fundamentado na criação da Bolsa de Amesterdão onde as ações da VOC conheciam cotação invariavelmente ascendente e  alavancavam outras com uma dinâmica especulativa, que nem a crise com os bolbos das tulipas em 1636 conseguira refrear.

Acresce ainda a curiosidade de o rosto da rapariga do quadro ser provavelmente o de Catharina Bolnes, a mulher do pintor e seu modelo em muitas das obras, que dele conseguiram sobreviver até aos nossos dias. E, nesse sentido, até que ponto não é ele o oficial numa autorrepresentação fantasiada já que, nunca alguma vez sairia de Delft para visitar os muitos destinos dos navios da Companhia das Índias Orientais como o produto do seu intenso labor nunca foi suficiente para propiciar à mulher e aos sete filhos mais do que uma remediada sobrevivência. 

quinta-feira, janeiro 28, 2021

(DIM) Ópera, Dario Argento, 1987

 


Sei que suscito alguma surpresa ao confessar-me apreciador de filmes de terror, mas os da lavra de Dario Argento são daqueles que justificam essa adesão por cuidarem dos cânones do género com apreciável virtuosismo. Os temas associados ao voyeurismo e ao sadomasoquismo remetem para obsessões do foro psiquiátrico, que sempre fascinam por incidirem nos recantos mais sombrios da mente humana. Ademais há movimentos de câmara, cenários ou bandas sonoras como não se encontram noutros realizadores associáveis ao mesmo tipo de filmes ou a quaisquer outros.

Outro aspeto peculiar na obra de Argento é a dimensão operática, essa forma de associar sons e imagens num espetáculo total capaz de oferecer um impressivo choque visual a quem a aprecia. Daí não se ter estranhado que, em 1985, e na sequência de um convite anteriormente endereçado a Ken Russell - também ele autor de obra singular e inigualável! - o Teatro Sferisterio de Maserata - o tenha desafiado para encenar o Rigoletto de Verdi.

A experiência correu mal e Argento foi despedido sem levar o projeto até ao desiderato concetualizado na sua mente. Este filme, realizado dois anos depois, constitui uma espécie de demonstração do que poderia ter sido tal produção se tivesse sido levada à cena,

Para melhor potenciar as linhas de força de toda a sua filmografia, Argento substitui o Rigoletto por outra ópera de Verdi, o Macbeth, explorando o rumor quanto a ser obra azarada para quem tem a desdita de a interpretar no palco. Que o diga a primeiro soprano do filme, essa caprichosa Mara Cecova, que alimenta grandes discussões com o encenador cujas opções contesta com assaz veemência. Mas logo sai de cena, envolvida num acidente que a recambia para o hospital.

Substitui-a a doce Betty, que pressente o quão impreparada está para corresponder ao desafio. Não fosse a insistência da agente e ninguém mais a convenceria a deixar-se dirigir por esse Marco em quem reconhecemos a condição de alter ego do próprio Argento. Se a voz depressa demonstra o acerto da escolha da nova protagonista os incidentes começam a envolver a preparação do espetáculo numa sucessão de incidentes técnicos com consequências mortais para as primeiras vítimas daquele que depressa se apercebe ser um serial killer focalizado na cantora. Porque, embora sempre disfarçado, dá-se-lhe a conhecer, quando a obriga a assistir aos crimes, que vai multiplicando, aplicando-lhe um dispositivo impeditivo de a deixar fechar os olhos enquanto, com requintes de sadismo, vai matando um rol crescente de vítimas.

Se a câmara coloca Betty no centro do olhar de todos quantos a rodeiam - dirigentes da Ópera, a agente, um inspetor da polícia, o encenador, o público, a vizinha - tardamos a identificar o assassino, transferindo as suspeitas para vários dos personagens só lhes ilibando as culpas ao darmos com eles a engrossarem o número dos que vão morrendo.

Argento tem o condão de nos transformar de voyeurs em participantes como se fôssemos mais um dos atores da história.

Começa a compreender-se que existe alguma relação entre os acontecimentos e um trauma vivenciado por Betty na infância. Opera evolui para uma trama psicanalítica em que os espaços do consciente, do subconsciente e do inconsciente se estratificam. Eros e Tanatos voltam aqui a interligarem-se como se fossem indissolúveis e o rosto de Betty, intimidado, frígido aquando das relações sexuais, assume a expressão da volúpia do desejo, quando aceita as partes sombrias de si mesma. Ao percorrer uma conduta de ventilação entre o seu apartamento e o da vizinha é como se ele fosse o corredor da casa da sua infância.

Compreende-se que Argento trabalha o olhar e o estatuto de quem vê. Inverte os pontos de vista, passa do campo para o contracampo e combina diversos planos subjetivos num só. Na mesa de montagem, quer a dos fotogramas, quer a da sonoplastia, o filme é (re)construído à medida dos efeitos necessários para potenciar os enquadramentos desfocados, os delirantes movimentos de câmara, os grandes planos, os dessincronismos e contrapontos sonoros. Argento preocupa-se em fazer com que cada cena supere a precedente em maestria.

E o final, apesar de aparentemente resolvido, existe a forte probabilidade de Betty continuar a sofrer os efeitos de um passado mal resolvido num tão sangrento presente. 

(DIM) Versões redutoras de conflitos diversos

 


Há dias exultantes, quando vejo ou revejo filmes, que me dão enorme prazer. Mas também os há menos bons, quando as imagens em movimento desiludem ou entediam. No caso de Miles Ahead, o filme que Don Cheadle rodou em 2015 dedicado a um dos maiores nomes do jazz, a reação andou entre o desagrado pelo enredo e a mitigada satisfação de ouvir alguns dos temas da sua autoria. Sobre o trompetista poder-se-iam ter escolhido muitas outras histórias suscetíveis de darem uma versão menos redutora do que esta - a de um janado egoísta, que estoirou com o casamento e passou cinco anos sem produzir uma nota musical. A que poderia resultar da abordagem daquela noite dos finais dos anos 50, quando Louis Malle o convenceu a compor toda a banda sonora do seu filme Fim-de-semana no elevador e ele a concretizou numa jam session individual que continuamos a ouvir com um enorme agrado. Ou quando optou pelo “banho turco” para se desintoxicar da toxicodependência. Ou, indo mais atrás, quando foi um dos que agarrou no testemunho, inicialmente empunhado por Charlie Parker e Dizzie Gillespie, e deu novas texturas ao bebop. Porventura iludido com a possibilidade de igualar Clint Eastwood no sucesso com que abordara a biografia de Charlie Parker, Cheadle inventou um jornalista free lancer, interpretado por Ewan McGregor, para tornar verosímil a disputa de Miles com quem queria apossar-se de uma gravação caseira completamente desconhecida. Mas vendo essa credibilidade esfumar-se na inconsistência do desenvolvimento narrativo.

Acabei o filme a pensar que se tiver de existir alguma biopic sobre Miles Davis, esta versão não será das que se recomendem.

Conclui, igualmente, a série The Spy, que amigos fiáveis me tinham elogiado. Sasha Baron Cohen interpreta o papel de Eli Cohen, uma espécie de 007 israelita, que os sírios desmascararam e publicamente enforcaram numa praça de Damasco em 1965.

Inegavelmente bem feita com todos os meios postos pela Netflix à disposição do realizador, incomoda-me o maniqueísmo do argumento com o herói sionista a revelar-se notável na inteligência com que ilude as ingénuas altas patentes militares inimigas, chegando a ser convidado para vice-ministro da Defesa em vésperas de tudo deitar a perder.

Se é interessante a progressiva diluição da identidade de Eli, assumindo involuntariamente a do seu disfarce, não deixamos de olhar para os sírios como brutais na forma como desprezam a vida dos judeus ou os de outras façóes do próprio regime, enquanto os israelitas surgem como estoicos sobreviventes dos desencontros com a História, que sempre os ameaçam de extinção.