quinta-feira, julho 27, 2023

Um romance mais do que ambíguo

 

No final da adolescência li um romance de Curzio Malaparte, que estava a merecer algum entusiasmo à minha volta enquanto comprovava a pífia natureza da primavera marcelista.

A Pele, assim se chamava o livro, tinha por cenário a libertada Nápoles dos finais de 1943 e pretendia mostrar não haver grandeza na nova pax americana, como nunca a tivera a sinistra dominação mussoliniana. Nos labirintos do bairro espanhol crescia uma peste feita de falta de escrúpulos, miséria e sujidade, tudo aí se vendendo num mercado negro, que coexistia com a pujante prostituição.

A trama impressionava pela descrição de situações próximas da abjeção, que justificavam alguma desorientação quanto às verdadeiras intenções do autor. Sobre o qual viria depois a saber que fora convicto fascista, antes de se recauchutar como oficial de ligação entre o derrotado exército italiano e o ocupante norte-americano.

Em 1949, quando conheceu imerecido sucesso com este romance, Malaparte não viu melhor forma de compensar a frustração da derrota do que pôr os G.I’s a tremerem perante a força bruta do Vesúvio. Como se a cólera divina, assente num efetivo acontecimento vulcânico, pudesse ser a salvaguarda de uma populaça que, como se vê atualmente com a governação Meloni, continua a ter os genes fascistas a integrar-lhe o ADN.

quarta-feira, julho 26, 2023

A Experiência, média metragem de Abbas Kiarostami

 

Belíssimo o trabalho de iluminação do filme «A Experiência», que Abbas Kiarostami rodou há cinquenta anos, quando era o mais criativo realizador do Instituto para o Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Adolescentes, quando o regime do xá ainda parecia inamovível da realidade iraniana.

Durante cerca de uma hora ele revela a passagem de Mahmad da infância à juventude, quando vive o dia-a-dia condicionado pelo ambiente de uma pequena cidade e pelo emprego num estúdio de fotografia onde se vê, amiúde, maltratado pelo patrão.

Mais próximo do documentário do que da sua matéria ficcional, o filme integra a habitual poesia dos filmes do autor, contendo poucos diálogos e pressagiando o talento fotográfico, que garantiria a Kiarostami o merecido reconhecimento nessa arte aparentada das imagens em movimento.

sábado, julho 22, 2023

Notícias de uma expedição submarina

 

Embora tenha passado umas quantas vezes ao largo da Ilha da Reunião, e a ter escalado pelo menos duas vezes, nunca ouvira falar da submarina Ilha de la Pérouse até me aparecer o documentário de Yann Rineau que, em 2020, procurou testemunhar a expedição científica destinada a entender algumas das suas singularidades. Mormente a forte probabilidade de não ser a Ilha de Santa Apolónia assinalada pelos cartógrafos do século XVII e que poderia ter-se afundado entretanto por causas tectónicas desconhecidas. Afinal os marinheiros de então tê-la-ão assinalado como perigos banco submerso erradamente interpretado como emerso pelos que, então, traçavam as cartas marítimas.

Situado a mais de 50 metros de profundidade, o cume alberga vida marítima de enorme riqueza e diferente da remanescente da grande ilha ali ao lado, onde a sobrepesca poderá tê-la exterminado.

Para além das belas imagens submarinas, regista-se o contentamento dos biólogos, que descobrem espécies potencialmente recuperáveis para estratégias de repovoamento capazes de compensarem os danos causados pela ação humana. 

quarta-feira, julho 19, 2023

Voyeurismo ou a pungência da emoção?

 

A imagem é terrível embora o fotógrafo, Adem Altan, tenha tido o incentivo do retratado para captá-lo. A par de outras da mesma sequência, igualmente conhecidas na imprensa internacional de fevereiro deste ano, vê-se um homem de colete laranja parado no meio da confusão de outros socorristas, que procuravam sobreviventes no prédio onde vivia em Kahramanmaras, na Turquia, após o terramoto, que reduziu cidades e vilas a montes de escombros.

Ele segura a mão fria da filha adolescente, porque nada mais pode fazer do que aguardar pelo momento de dali a retirar e dar-lhe conveniente sepultura. Mas é pertinente a dúvida quanto a olharmos para este testemunho com a perversa curiosidade dos voyeurs, ou se somos instados a solidarizarmo-nos com o sofrimento de quem, nessa assumida vontade de se expor ao mundo, busca impossível alívio! 

segunda-feira, julho 17, 2023

Memórias pendulares

 

1. Estou a seguir com muito interesse o percurso teatral e cinematográfico de Marco Martins que, com «Pêndulo», oferece mais uma versão do realismo contemporâneo, feito de trabalhos precários e mal remunerados, que cerceiam os legítimos anseios de quem deseja ter uma qualidade de vida digna.

Nesta peça em que empregadas domésticas e cuidadoras de idosos dão conta das suas experiências temos novo retrato sombrio sobre uma sociedade que não se livra da exploração dos humilhados e ofendidos e lhes inibe a esperança em radiosas utopias.

2. Embora colada à sua participação no “Blowup” de Antonioni e nas canções com Serge Gainsbourg, Jane Birkin revelou-se uma mulher extremamente interessante nas opções quanto ao que interpretava, cantava ou nas lutas em que militava. Sempre com um sorriso cativante onde se adivinhava uma inocência raramente posta em causa pelos desgostos, que a sua biografia comporta.

A notícia da sua morte deixa-nos mais longe de uma época em que essa inocência ainda não fora pervertida pelas iniquidades políticas e sociais que, desde então, se nos tornaram incontornáveis.

3. Na sua última crónica para a Antena 2 antes das férias, Mário Cláudio enfatizou a importância dos álbuns, quando tinham merecido destaque na sala de receber visitas das famílias tradicionais. Eles eram os testemunhos das origens de que se provinham e da subsequente escalada social.

Hoje tiramos tantas imagens com os telemóveis, que cada perderam a importância das desse passado, quando a pose perante o fotógrafo era acontecimento digno de ser devidamente planeado e organizado. 

quinta-feira, julho 06, 2023

Robots metamorfoseados

 

A peça artística já tem uns bons anos e vimo-la na Gulbenkian, na galeria do piso inferior do Edifício principal, junto ao bengaleiro, onde agora se contrapõem as obras de Rui Chafes e Alberto Giacometti.

A exposição era sobre a arte contemporânea portuguesa e, logo à entrada, ouvíamos um som distante, algures lá no fundo e que ia-se tornando mais nítido à medida, que percorríamos as várias obras e ficava mais próxima a origem daquele que se clarificava como tema conhecido dos Kraftwerk: We are the robots.

Era uma proposta de videoarte de Noé Sendas, sempre no propósito de questionar as noções de identidade e de autoria, recorrendo a um coro para interpretar o hit do grupo de Dusseldorf, transcendendo-lhe a condição de sucesso pop para o converter numa metamorfose ao seu sentido original.

Terá sido essa a primeira vez que valorizei a música dos Kraftwerk como algo mais do que um tipo de som escutado com agrado no intervalo de outros de mais canónico agrado, porque enquadrados no jazz ou na tradição erudita (mesmo que contemporânea).

Valorizei então a vertente inovadora de quem recorria aos computadores para substituir os instrumentos, embora não me entusiasmasse a acrítica rendição à tecnologia como resposta para aceder a utopias, que as ideologias transformadoras estavam distantes de anunciar. Ou à opção da língua alemã para expressar mensagens curtas, que tendiam a anunciar semióticas, que colidiam com as convicções de, só mediante alinhamento detalhado de razões, terem efeito as mensagens, que importa disseminar entre quem se quer alinhado com os imperativos das mudanças sociais. 

terça-feira, julho 04, 2023

Percursos criativos no seu início

 

De anónima Vivian Maier quase se transformou numa pop star, quando se revelou o conteúdo das muitas caixas de negativos, que deixara sem nunca arriscar a divulgação. Como se tão-só a interessasse o ato de fotografar e o soubesse tão efémero quanto a própria vida.

A pulsão para eternizar o instante sem se iludir com tal hipótese, terá sido epifania no início dos anos 50 quando regressou a França para receber a herança de uma tia recém-falecida na aldeia alpina de Saint-Julien-en- Champmaur. Vivian estivera aí com a mãe, pouco antes da Segunda Guerra, quando a acompanhara na fuga a um casamento infeliz contraído além-Atlântico. Com uma pequena câmara pretendia recolher a memória dos familiares aí residentes, assim captando a vida rural da época, e demonstrando-lhe a potencialidade de uma vocação artística tão repentinamente descoberta.

A breve estadia em França e a pequena herança facultaram-lhe os meios para levar mais a sério uma obra, que avançará da temática rural para a urbana em que se focalizará doravante, dando-nos memória visual da segunda metade do século transato norte-americano e das mudanças sociais e culturais nele percetíveis.

A transição do rural para o urbano também foi assumida por Joyce Carol Oates, uma das mais importantes escritoras norte-americanas do século XX, ao instalar-se em Detroit para ser a primeira mulher a tornar-se professora numa das universidades locais. 

No início dos anos 60 a Motown vivia a sua época dourada, dali saindo os carros-banheira, que engarrafavam as autoestradas americanas. Mas a crise espreitava e a década concluir-se-ia com grandes lutas sociais, que precipitariam o declínio da cidade e denunciariam as agudas desigualdades de rendimentos entre quem vivia nos seus bairros pobres e os que se iludiam com o seu falso esplendor.

Eles é o romance, que consagrou a escritora e melhor retrata essa América sórdida em que Maureen, a protagonista, constata não existir espaço para os tão prometidos sonhos de um modo de vida ideal. Porque ela é a alter ego de Joyce, por essa altura impressionada com o sucedido com um dos seus mais brilhantes alunos, que se suicidou depois de assassinar um rabino.

Quando publicou o romance, já ela se exilara para o outro lado da fronteira, buscando maior quietude na serenidade canadiana. 

domingo, julho 02, 2023

Uma aldeia britânica da Idade do Bronze

 

Grande prospeção arqueológica é a que está em curso em Must Farm, perto de Cambridge, naquela que foi a zona mais pantanosa da Inglaterra, e está a revolucionar quanto se sabia sobre a História europeia na época da Idade do Bronze. Porque a aldeia engolida pelas lamas ficou parada no tempo durante três mil anos até ser redescoberta por mero acaso. E ganhando fama de Pompeia britânica. Porque encontraram-se vestígios de refeições interrompidas, ferramentas então em uso, belas pérolas verdes e um dos maiores acervos europeus de tecidos pré-históricos.

Graças à abundância de detalhes os arqueológos criaram uma ideia clara de como eram os usos e costumes na população aí estabelecida. Mormente as técnicas que dominavam, as armas que utilizavam, mas também as redes comerciais de comunicação com outros povos.

A exumação da aldeia tornou-se incontornável, quando obras na Must Farm começaram a revelar a existência de quantidades suspeitas de pedaços de madeira no seu solo. A datação deu-os como tendo sido utilizados mil anos antes da chegada dos exércitos de Júlio César às Ilhas Britânicas. E, apesar desse tipo de material quase sempre se decompor, o que se encontrou estava miraculosamente preservado pelas condições pantanosas dos terrenos da região. Encontraram-se as estruturas das casas circulares com o recheio (ferramentas agrícolas e utensílios de cozinha) existente no seu interior e todas avizinhando-se umas das outras.

Exposta ao ar ao fim de três mil anos, a madeira arrisca-se a secar e a decompor-se, razão para ser permanentemente humidificada. Uma das peças mais singulares é a de uma das mais primitivas rodas inventadas nesse período, mas também se encontraram pirogas para deslocações no rio.

Must Farm dá respostas substantivas como viviam esses desconhecidos antepassados!

Dylan Thomas, setenta anos passados sobre a sua morte

 

Foi o grande poeta de entre as duas guerras mundiais e, para o homenagear, reconhecendo-lhe a influência, Robert Zimmerman pseudonimizou-se em Bob Dylan.

Nascido em 1914 ficou para a História como o poeta inebriado pelas mulheres e pelo álcool. E levando tão a sério a imagem para quem o via, que mimetizava os gestos do bêbedo, quando conseguia sair dos pubs sem ter chegado a esse estado de inconsciência. Mas capaz de criar uma linguagem poética e metafísica como ninguém, até então, a alcançara.

A vida curta - 39 anos - contribuiu para dar-lhe a aura mítica de quem quisera, e não conseguira travar a marcha do tempo. No entretanto perdera de vista o miúdo de 4 anos a quem o pai, respeitável professor, costumava ler sonetos de Shakespeare.

sábado, julho 01, 2023

Picasso, o Minotauro

 

Não admira que Picasso tenha representado os touros desde as suas primeiras obras: em criança o pai levava-o às arenas aos domingos como prémio do seu bom comportamento durante a semana. Era um prémio, que o orgulhava!

O touro tornou-se depois no Minotauro a quem se sacrificavam vítimas com os rostos das sucessivas mulheres, que lhe iam passando pelos leitos. Olga, Marie Thérese ou Dora Maar coabitaram com os tão admirados e míticos animais em sucessivas telas, só mais tarde descobertos na liberdade precária dos prados onde eram criados. E que concluiu ter subestimado, porque eivados de uma força, afinal já testemunhada nas pinturas das grutas de Lascaux.

Um dos romances a levar para a ilha deserta

 

A lenta, mas prazerosa leitura do Gente Feliz com Lágrimas devolve-me ao encontro a sua intensa descoberta, quando andava nos meus trintas. Foi nodistante ano de 1988 que, num verão passado na Grécia, passei horas a deleitar-me nessa leitura, seja nas longas horas de fim-de-semana, quando o ar condicionado era a salvação perante as agruras do insuportável calor lá fora, seja à noite, quando ia para uma esplanada e continuava-lhe a leitura diante de um frappé.

Trechos, como o agora deparado a meio do romance, faziam-me ler e voltar atrás para melhor apreender a forma como João de Melo tão bem descrevia as características enevoadas dos céus açorianos tais quais recordadas por quem deles se apartara em (des)proveito da terrível snow de Vancouver: “Dos Outeiros para cima, lá bem na alma da serra, o mundo mergulhava de repente numa bruma de chuva, com um azul fumo erguendo-se nos rolos formado pelo vento. O sol desaparecia durante o resto do dia. Mal podíamos despedir-nos dele com o olhar, vendo-o pela última vez ao longe, no sítio onde acabava o mar e o céu se erguia naqueles discos de nuvens paradas como a eternidade. Havia, há sempre no céu dos Açores, nuvens castanhas e nuvens cor de pedra, e entre umas e outras enrolam-se argolas de fumo e grandes massas de ar carregado de chuva. Foi assim aliás que aprendi tudo a respeito do nevoeiro, do granizo e da sombras que há no tempo. Sofri os ventos frios, brutais, e a sua humidade corrosiva como o ácido da ferrugem. Ainda hoje não saberei dizê-lo de outra maneira, porque ninguém me explicou a máquina do mundo. Mas a mim sempre me pareceu que a ventania atravessava a Ilha de norte para sul, levando as nuvens e o próprio mar dum lado para o outro da costa. O vento tinha um gosto a sal, feria-nos as asas do nariz e rasgava-nos os beiços, e o frio era tão cortante que nos enchia os ossos de humidade.”

Perante estas linhas, que mais lhes acrescentar senão a rendição a um dos romances mais impressionantes, que têm passado, e repassado, pelas minhas mãos?