segunda-feira, novembro 30, 2020

(DL) Nem só mas também, Augusto Abelaira

 

Regressei agora à leitura de Augusto Abelaira meio século depois dele se me ter convertido num muito admirado autor à conta de um romance - A Cidade das Flores - que tanta importância teve para a minha geração. Datado de 1959 toda a sua ação era passada na Itália de Mussolini, mas quem ignorava haver ali um retrato fiel do Portugal de Salazar?

Até à sua morte em 2003 quase tudo dele li, sempre lhe admirando a ironia e o gosto pelos paradoxos. Algo que não falha neste seu último romance, publicado postumamente em 2004 e que constituiria o exercício de reescrita de um escritor hospedado num hotel de Siracusa e apostado em repetir, tanto quanto possível fielmente, o que redigira dez anos antes num bloco de notas para depois, tal como o Pierre Ménard de Borges a respeito do Quixote, comparar a versão atual com a anterior.

Ele evoca as tardes numa esplanada em Belém onde observara a evolução da relação clandestina de um par amoroso a respeito de quem formula as mais diversas hipóteses, mas ao mesmo tempo convivendo com uma ex-amante, Júlia, e uma amiga desta, Adriana, que estuda as falas de uns papagaios, que conservaram, geração após geração, as conversas escutadas às mais díspares personagens históricas, suscitando novas interpretações palpitantes a seu respeito. Do Abraão bíblico aos envolvidos na guerra de Tróia é toda a civilização ocidental a ser posta em causa pelo contributo das estranhas aves.

Pelo meio Abelaira semeia muitas perplexidades, que nos inquietam enquanto leitores, a menor das quais não é o facto de nos mostrarmos bem menos sensatos do que as crianças por, lamentavelmente,  nos termos esquecido da época em que nos multiplicávamos em perguntas sobre tudo e mais alguma coisa. Ora essa é uma daquelas questões, que condiz bem com a personalidade de Abelaira, indefetível antifascista, mas  cioso da sua inabalável independência no pós-25 de abril, quando desempenhou briosamente cargos de responsabilidade com irrepreensível sentido do serviço público e, depois, acabou os dias no papel de sábio por muitos procurado para recolherem os ensinamentos da sua notável erudição.

Injustamente esquecido - como tantos grandes nomes da sua geração - esperemos que o gosto dos portugueses pelas efemérides os leve a revisitar a sua obra em 2023 a propósito do 20º aniversário da morte, ou três anos depois, quando for altura de celebrarmos o centenário do  nascimento.

(DIM) Deus Abençoe a América?

 

Realizado em meados do ano passado, quando as eleições do início deste mês ainda vinham longe, o documentário que a SIC Notícias passou numa destas noites revela o lado mais assustador de uma América trumpista, onde a religião evangélica procura ganhar importância suficiente para impor a sua agenda ideológica ultrarreacionária.

Diabolizando o direito ao aborto, esses brancos veem no ateísmo e no comunismo as expressões de um Satanás contra o qual não hesitam em pegar em armas, organizando-se em milícias dispostas a passarem à ação assim lhes deem a ordem para tal.

É um universo assombroso, que não hesita em utilizar as mentiras mais descabeladas para demonstrar o fundamento das suas opiniões, como é exemplo lapidar o museu dedicado ao criacionismo com o parque temático da Arca de Noé logo ali ao lado. Nesse espaço, que pretende dilatar a percentagem dos crentes na datação histórica da Bíblia em detrimento das certezas científicas a tal respeito, mostram-se Adão e Eva a conviverem com os dinossauros, como se uns e outros tivessem aparecido há seis mil anos nos sete dias particularmente ocupados para um Deus até então entediado. E que dizer do Woodstock cristão a que não faltam os grupos de hard rock cujas letras são completamente opostas às habitualmente associáveis aos que percorrem os circuitos tradicionais? Entre a assistência predominam os adolescentes, que estão convencidos da perversidade do sexo antes do casamento sendo inaceitável que a noiva chegue a essa ocasião sem a sua inviolada virgindade.

Em cinquenta minutos fica exposta em todo o seu sinistro esplendor o que é um país dividido a meio entre estes singulares exemplos de um passado difícil de devolver para as catacumbas da História e uma população citadina identificada com aquilo que a Ciência vai demonstrando. 

domingo, novembro 29, 2020

(DIM) Um Republicano a espreitar os vícios monárquicos

 

Pode um truculento republicano apreciar uma série como The Crown, cuja quarta temporada está atualmente em exibição na Netflix? 

A resposta é sim, porque impressionam os meios avultados investidos para tudo ser credível, tanto mais que os atores e atrizes são mais do que competentes. Mas, sobretudo, porque a realeza britânica mostra a consciência de estar por um fio, salvando-se in extremis quase sempre por obra e graça do acaso. Os seus podres vão-se explicitando - no episódio que hoje vi revela-se o rosto das primas dadas como mortas nos registos oficiais, mas de facto encerradas durante dezenas de anos num manicómio para não serem levantadas questões quanto às possíveis maluqueiras hereditárias.

Ademais demonstra-se que Margaret Thatcher era a víbora, que sempre soubemos ter sido e também ela salva de efémero desempenho como primeira-ministra pela oportuna guerra das Malvinas. Depois de a termos visto como a irritante Scully de Ficheiros Secretos, Gillian Anderson consegue decuplicar essa antipatia ao interpretar o papel de uma mulher sem nenhuma qualidade digna de admiração.

Diana é, claro, a heroína incensada para que os corações piegas melhor se identifiquem com a série, enquanto vítima de uma família enciumada pelos favores populares que desperta e compensando a infelicidade numa descontrolada bulimia.

Em suma, tudo razões para que fique como conclusão óbvia a absurda continuidade de uma tradição monárquica há muito obsoleta.

Há muito espero ver a República proclamada na Inglaterra, em Espanha e, obviamente, na terra natal das minhas netas (Países Baixos). E, mesmo sentando-me, ainda me ocorre a possibilidade de viver o suficiente para ter tais alegrias...

 

(S) O Cravo bem temperado de J. S. Bach por Andras Schiff

(DL) As diversas violências contra as mulheres num só personagem

 

Nesta semana em que houve o Dia Internacional pela eliminação da violência contra as mulheres merece atenção uma entrevista da France Culture com Djaïli Amadou Amal, cujo romance Les Impatientes, que está na lista de finalistas para o Goncourt deste ano. Revelando a razão do seu projeto ela assumiu que queria escrever um romance sobre as violências perpetradas de diversas formas contra as mulheres: “o casamento precoce e forçado sem violência, a poligamia violenta, as violências conjugais, as violências físicas, as violências psicológicas”.

O problema estava em concentrar num só personagem todo esse tipo de violências, razão porque utilizou a expressão peul “Munyal”, que significa “paciência”, um dos atributos fundamentais dessa cultura africana, mas afinal de âmbito universal.

sábado, novembro 28, 2020

(DL) Escrever para melhor entender o que, em tempos, se viveu

 

Valter Hugo Mãe é daqueles escritores atuais de quem (quase) tudo leio. A exemplo de João Tordo, Ana Margarida de Carvalho, Mia Couto ou José Eduardo Agualusa. Se me foi grata a fase inicial, a da descoberta do seu universo criativo em que abordava o apocalipse dos trabalhadores ou a máquina de fazer espanhóis, quando zarpou para outras geografias, que não as nossas - o Japão, a Islândia - o inerente distanciamento a personagens de outras idiossincrasias não obstou a que lhe admirasse a esplêndida prosa, a narrativa fluida e coerente, as conclusões que sugeria.

Agora anuncia-se novo romance, que tem a infância como espaço e tempo revisitados. Recordando-lhes os sofrimentos, mais do que o quanto de grato pudessem conter. E está prometida a empatia por ser tema que, ultimamente, também me preenche em exercícios ficcionais de inesperados resultados. Porque o veículo da escrita vem-me permitindo descobrir o que não clarificara para além do que tinham descortinado os olhos infantis. E se houve quem sugerisse viver para depois sobre tal se escrever, o que o novo romance de Valter Hugo Mãe comporta é a possibilidade de partir da escrita para se indagar melhor aquilo que se experienciou.