sábado, janeiro 29, 2022

A lucidez do nosso excecional Nobel


Fizemos coincidir a campanha eleitoral com a releitura de «Ensaio sobre a Lucidez», que José Saramago publicou em 2004 para grande escândalo dos que não apreenderam o seu sentido alegórico e, precipitadamente, quiseram entendê-lo como um apelo abstencionista.

É certo que, por preconceito ideológico, os detratores do nosso Nobel não se escusam a lê-lo às avessas do por ele pretendido. Daí a rapidez com que o julgaram a abandonar a validade num determinado sentido de voto só porque, nesse romance, a grande maioria dos eleitores da capital votaram em branco num escrutínio, que deixou os governantes à beira de um ataque de nervos. Porque não podiam ver outra interpretação possível para o sucedido, que não fosse uma conspiração antidemocrática, quiçá enquadrável numa estratégia terrorista, que punha em causa os fundamentos constitucionais do regime. Daí que governo, polícia e outras autoridades saiam da cidade e entre ela e o exterior criem uma fronteira intransponível até mesmo para os que tinham votado e pretendiam exilar-se do lado de lá dos que haviam expressado tão singular forma de participação política.

Numa ligação intencional com outro grande romance, publicado nove anos antes  - «Ensaio sobre a Cegueira» - Saramago faz da mulher do médico, a única que não cegara quatro anos antes enquanto todos à sua volta tinham ficado afetados pela inexplicável epidemia, o bode expiatório mais a jeito para dar fundamento a essas teorias, sobretudo construídas pela sinuosa mente do ministro do interior, alicerçado na denúncia de um salafrário.

A releitura dos romances de Saramago está a constituir um enorme prazer, porque lido em voz alta pela Elza para nosso mútuo benefício. Dando assim azo a melhor ponderarmos na musicalidade na construção das frases, mas sobretudo nas muitas pistas de reflexão sugeridas pelo autor.

Neste projeto, que se prolongará ano adentro como forma de, a nosso jeito, participarmos na comemoração do seu centésimo aniversário, só vamos reencontrando as muitas razões para justificar o merecido preito decidido pela Academia Sueca.

quarta-feira, janeiro 26, 2022

As várias fases da obra de Tarsila do Amaral

 

Para recordar o essencial da obra da brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973), aqui evoco três dos seus quadros, criados respetivamente em 1923, 1928 e 1933.

Valerá, porém, lembrar o nascimento da artista em berço de ouro numa fazenda de café do Estado de São Paulo onde os hábitos cosmopolitas europeus dos seus donos entravam em contradição com a tradição esclavagista nela implementada.

Interessada pela produção artística e não estando abertas as matrículas às mulheres nas Escolas das Belas Artes brasileiras, Tarsila rumou à Europa para estudar pintura com um dos grandes mestres cubistas de então: Fernand Léger.

Não ficaria, porém, à margem da grande revolução cultural propiciada pela Semana da Arte moderna que, em fevereiro de 1922, decorreu em São Paulo e lançaria o primeiro movimento modernista do Brasil com o assumido propósito de renegar do academismo das influências europeias e de buscar a originalidade inerente á realidade sul-americana.

«A Negra«, o primeiro desses três quadros aqui referenciados, acaba por ser ambíguo quando ao pretendido por esse movimento artístico: querendo representar a brasilidade através de uma mulher negra, que amamenta e acarinha os seus filhos, Tarsila esquecia a violência inerente à sociedade extremamente hierarquizada em que pretendia reajustar-se depois de abandonar Paris definitivamente.

Viu-se então numa cidade em ebulição, a industrializar-se intensivamente e a crescer em altura. Rebelde, Tarsila assume-se na sua condição de mãe celibatária e dá cores vibrantes aos quadros, celebrando neles a euforia do mundo moderno.

Participa, então, numa viagem empreendida por uma caravana de artistas modernistas até ao Brasil profundo tal qual era ainda o interior do Estado de Minas Gerais. «Abapora» já traz essas referências relativas a um Brasil primitivo e genuíno, que promove sob a égide do movimento antropofágico.

Numa evolução, que vai alterando a estética proposta nos seus quadros ela vê a Grande Depressão de 1929 reduzir a nada a fortuna da família e adere ao Partido Comunista no mesmo ano em que apresenta «Operários».

Faz por essa altura uma prolongada viagem à União Soviética, que lhe serve de estímulo para o incremento da consciência social. Porém, sem dinheiro, só consegue regressar ao Brasil depois de trabalhar durante alguns meses na construção civil em França para ganhar o suficiente e garantir essa travessia atlântica.

Os dissabores não se dissociam de si: as ideias políticas levam-na à prisão durante a ditadura de Getúlio Vargas, muito embora o valor e consideração pelas suas obras não cesse de crescer.

Nos anos crepusculares ficou paralítica depois de uma operação à coluna e aproximou-se do espiritismo e do seu principal expoente, Chico Xavier. Mas, nessa altura, já era uma sombra de quem fora antes desses cinzentos anos 60. 

terça-feira, janeiro 25, 2022

O viajante a olhar por cima das nuvens

 

Há aquele homem, de pé sobre a precipício, a virar-nos ostensivamente as costas. Pose frequente nos quadros de Caspar David Friedrich, que convidava-nos a olhar as paisagens com os seus personagens em vez de lhes darmos a específica importância. Porque ele pede que nos cinjamos à contemplação, porventura para melhor termos consciência de nós mesmos. Porque o cenário é um espelho, que reflete quem o olha, independentemente do que representa em si mesmo.

Depois há aquela névoa, que não chega para esconder outras montanhas, que ali se justapõem e serão tão acidentadas quanto aquela donde o viajante as vê.  E eis-me estimulado para a memória daquele fim de tarde em que tivemos igual experiência ao ascendermos à Arrábida com outros caminhantes e tudo quanto abaixo se situava ficou-nos tapado por um ainda mais espesso manto de nuvens.

Que experiência essa em que, pelas seis da tarde de um dia de verão, avançámos para a noite no alto da montanha e com focos de luz pendurados nas cabeças, olhámos para a Natureza de uma forma tão nova. E o quanto ela nos andou escondida, porque as fotografias então captadas, revelaram outro tipo de nuvens, as de pólen, que por ali vagueavam à nossa volta sem que delas déssemos conta no nosso deambular.

Talvez seja esse tipo de memória, que melhor me incutiu a ideia de ser o quadro de Friedrich um dos mais belos, que conheço. Porque sou capaz de apreciá-lo duradouramente numa evasão mental, que se projeta para infinitas associações. E encontro-me nesse juízo com muitas outras pessoas igualmente fascinadas por tal obra. Porque se o artista considerava que deveria pintar não só o que estava à sua frente, mas também o que via dentro de si - e por isso estava de acordo com uma das preocupações maiores do Romantismo - o que o espectador colhe é uma súmula de emoções, que muito têm a ver consigo mesmo.

É que, independentemente de noutras alturas, tender a pensar noutras hipóteses, neste preciso momento olho para o viajante e assumo-me como sua réplica nesta altura da vida a contemplar tudo quanto vivi e fica para trás e o quanto se depara à minha frente, por razões óbvias de idade e de saúde, previsivelmente enevoado. 

sábado, janeiro 22, 2022

Eva no Agosto madrileno

 

Em tempos - mais precisamente quando era mais novo! - talvez tivesse apreciado «A Virgem de Agosto» de Jonas Trueba como agora não consigo. É certo que existe uma protagonista com o simbólico nome de Eva, a ser interpretada pela encantadora Itsaso Arana. E a possibilidade de revisitar Madrid ao sabor das deambulações dela pela cidade quando todos partiram para as praias e sobraram os resistentes às ameaças do calor extremo. Mas convenhamos que pouco mais se passa: há encontros com pessoas, que se revelam interessantes apesar de não o terem parecido à primeira vista, e a sensação de um vazio, que não chega a ser preenchido por eventual assumpção quanto a um qualquer sentido para a vida.

Nesse passado em que teria manifestado entusiasmo com tal filme ocupar-me-ia do não dito, do apenas sugerido, mas fica a dúvida se é matéria só criada subjetivamente se terá algum nexo com as preocupações criativas de quem escreveu o argumento e o realizou. E essas ficam-me decididamente à margem do que possa aferir”.

O olhar, os pintores e o cinematógrafo

 

O cinematógrafo dos irmãos Lumière teria surgido sem a Revolução Industrial? Sobretudo sem o comboio, que dela foi um dos principais legados acelerando o tempo, aproximando distâncias e permitindo uma apreciação da realidade, que equivaleria ao que a sétima arte popularizaria enquanto travelling?

O movimento dos comboios começou por estimular os pintores a traduzi-lo nas suas obras: Turner, primeiro, e depois Monet com as telas pintadas na Gare de Saint Lazare. E também os grandes fotógrafos da época, Henri Rivière em particular, usaram as suas câmaras para antecipar o que seriam os planos depois reproduzidos ao ritmo de vinte e quatro imagens por segundo. Na recém-inaugurada Torre Eiffel este último experimentou o «plongée», ou seja o que se poderia ver a partir de um plano superior. Mas, curiosamente, também outro pintor - Caillebotte - já imaginara essa experiência num dos seus quadros.

O que significa que, através das novas tecnologias, das propostas de pintores e de fotógrafos, o cinematografo encontrou as condições para tornar-se na expressão artística de sucesso, que víria a surpreender-nos de tantas formas desde essa icónica noite de 28 de dezembro de 1895 na cave do Grand Café de Paris.

quinta-feira, janeiro 20, 2022

Oitenta anos depois...

 

1. Passam hoje oitenta anos sobre a sinistra Conferência de Wannsee que Irene Flunser Pimentel desvaloriza como sendo aquela em que a “Solução Final da Questão Judaica” foi decidida, porquanto não faltaram atos anteriores de genocídio sobre quem os nazis entendiam perpetráveis à luz da sua ideologia de supremacia racial.

O artigo que a historiadora assina na edição de hoje do «Público» relativiza essa questão, mas é igualmente interessante quanto a outra decisão tomada na altura: a do destino a dar às comunidades judaicas dos países neutros (como teoricamente Portugal então era) e que não perdiam pela demora: Reinhard Heydrich, o responsável pela eliminação dos judeus, prometia estender idêntico desiderato a elas tão-só Hitler assegurasse a vitória nazi. O que, convenhamos, não constitui uma surpresa tendo em conta o fanatismo ideológico dos que estiveram presentes na hora e meia, que durou o evento.

2. Na véspera da Conferência de Wannsee nasceu Nara Leão, que hoje seria recém-octogenária se o cancro no cérebro a não tivesse levado tão cedo.

No artigo em que a evoca - igualmente na edição de hoje do matutino da Sonae - Nuno Pacheco lembra que Maria Bethânia dela disse há dois anos que foi a chave para o conto de fadas que Deus escreveu pra mim” e, na mesma linha de pensamento, Sérgio Cabral afiançou ter sido “um ser humano de uma fertilidade impressionante (…) inaugurando caminhos e tendências e revelando valores esquecidos ou que estavam em início de carreira”. Por isso  a considerou “uma valente mulher que nunca perdeu a serenidade. Uma doce guerreira.”

E, porque com tudo isso, e muito mais, concordo, tenho por Nara Leão duradouro apreço, que me leva a, amiúde, ouvi-la enquanto voz das mais belas que o Brasil nos tem proporcionado.

3. Num documentário sobre Hitchcock lembra-se que mudou-se de armas e bagagens para a zona de São Francisco nos finais da década de 50 para livrar-se da asfixia a que os estúdios de Hollywood o sujeitavam. Desse exílio interno, e para paragens não muito distantes, resultaram dois dos seus mais memoráveis filmes: «A Mulher que Viveu duas vezes» e «Os Pássaros».

No primeiro a cidade dos significativos declives nada apresenta de turístico, antes revelando-se inquietante, se não mesmo ameaçadora, enquanto Scotty persegue a misteriosa Madeleine e por ela cria uma descontrolada obsessão amorosa. No caso daquele que foi um dos primeiros filmes de terror a sugerir animais como causadores da mortal ameaça para com os humanos, Hitchcock aproveitou o ambiente de Bodega Bay, onde continuam a ser imensos os bandos de gaivotas e pelicanos, para mostrar como a Natureza pode virar-se contra quem tanto a molesta. Dois grandes momentos de uma prodigiosa filmografia.

quarta-feira, janeiro 19, 2022

Uma versão da batalha de Estalinegrado

 

Pode-se sempre conjeturar o que teria acontecido na História do Século XX se, em fevereiro de 1943, os alemães não tivessem dado como definitivamente perdida a batalha de Estalinegrado. Pouco entusiasta das histórias alternativas acredito que eles teriam sido travados noutra qualquer batalha nas vastas estepes russas até por, nessa mesma altura, também já marcarem passo no cerco a Leninegrado. E parece-me óbvia a pressa com que os Estados Unidos entraram no conflito europeu e no norte de África ao preverem a rapidez com que a bandeira vermelha poderia vir a ser hasteada em Berlim.

Os dois volumes de «Vida e Destino« de Vassili Grossman são dos mais interessantes testemunhos dessa batalha até por ter sido por ele vivida na cidade à beira do Volga para onde fora enviado como repórter de guerra de um dos principais jornais soviéticos. O heroísmo e espírito de sacrifício dos soldados do Exército Vermelho e das populações russas e ucranianas são por ele testemunhadas, sobretudo na primeira parte, a que tem por subtítulo «Por uma causa justa».

Reajo com menos entusiasmo ao segundo volume, aquele em que Grossman derivou para a denúncia do estalinismo equiparando-o ao nazismo, tese muito pródiga nas direitas, mas cuja fundamentação não compro por existirem diferenças abissais entre ambas as ideologias por muito que o número de vítimas se meçam por milhões num e noutro caso. Grossman terá aproveitado as circunstâncias propícias das conclusões do XX Congresso do PCUS para desenvolver uma continuação da história anterior - que também reviu e alterou - a que a CIA se agarrou com unhas e dentes ao entendê-la  ferramenta muito útil aos seus desígnios durante a Guerra Fria. Não deixa de ser curiosa, a esse título, a preferência dada pela propaganda ocidental ao romance de Grossman em detrimento do «Gulag» de Soljenitsin desde a defeção deste último de um paraíso capitalista afinal muito escasso das virtudes, que lhe antevia, quando ainda era um dissidente no país de origem.

Se Grossman pretendia criar uma réplica de «Guerra e Paz» de Tolstoi bem se ficou pelas intenções. E acredito que mais facilmente haja quem hoje se dedique aos seus escritos com propósitos ideológicos do que por nele pressentir uma epopeia literária digna dessa ambicionada filiação. Resta o interesse para quem aprecia a história da Segunda Guerra Mundial e neles encontra matéria tão interessante quanto o de muitos outros livros sobre o tema. Mas sempre salvaguardando a deriva de Grossman para conotações equívocas só porque sentiu um clima antissemita a crescer à medida que Truman e Churchill pareciam apostados em aproveitar o estado ruinoso da economia soviética para avançar para os propósitos, que a subsequente guerra fria iria clarificar.

segunda-feira, janeiro 17, 2022

A Corrèze de Henri Cueco

 


Um documentário sobre um pintor francês, cuja existência desconhecia - Henri Cueco (1929-2017) - devolveu-me às paisagens da Corrèze, que conheci no início dos anos 70, quando Portugal ainda suportava os rigores do marcelismo.

Filho de um exilado espanhol e de uma francesa, o pintor foi um autodidata, que muito deveu a notoriedade à filiação comunista entre 1956 e 1976, com quadros influenciados por essa militância política, mas também com outros, igualmente figurativos, onde ressaltava o fascínio pela paisagem da região.

Que se tratasse de um artista comunista, não me espanta, porque o ambiente que então conheci, muito privilegiava a ligação das pessoas ao maquis

durante a Segunda Guerra, sofrendo por isso os subsequentes custos: ainda se recordavam tios e vizinhos, que tinham sido mortos pelos nazis.

Anos depois - passados os anos da Força Tranquila de Mitterrand - deu para constatar a transferência das simpatias para outro filho da região: o futuro presidente Jacques Chirac. Talvez tenha sido essa tendência, que levou o próprio Cueco a abandonar o partido alegadamente fascinado por propósitos libertários.

A paisagem verde, atravessada por ribeiros em cujas margens se iam colher cogumelos e onde apascentavam e bebiam as vacas, continua a mesma: lindíssima!