A RTP encontrou forma adequada de comemorar a passagem de mais um aniversário sobre o golpe, que esteve na origem da ditadura do Estado Novo, com a estreia da sua série dedicada à História da Pide, um excelente trabalho surgido de anos de investigação levado a cabo por Jacinto Godinho. Uma vez mais, e se ainda tal fosse necessário, fica demonstrada a superioridade do serviço público na produção e exibição de uma programação de qualidade, capaz de informar e cultivar, em vez de embrutecer como é apanágio das estações privadas. Soubesse a RTP resolver a lamentável parcialidade dos seus telejornais e teríamos de reconhecer a sua efetiva importância na consciencialização dos portugueses quanto à sua identidade e aos seus verdadeiros interesses.
O início, porém, levou-se a julgar que iria ver mais do mesmo, quando assistimos ao reencontro de Edmundo Pedro com João Silva, ambos a evocarem o dia em que foram presos, denunciados sabe-se lá por quem. Mas era só o ponto de partida para a demonstração da tese de ter existido um regime, que fundamentava a sua força na exploração de uma rede de denunciantes.
Apressadamente julgara-me perante mais um exemplo daquele tipo de documentários em que se dá a voz aos protagonistas e se julga cumprido o dever de análise daquilo que viveram. É o que sucede noutra série, em exibição na RTP 2 - «Estórias do tempo da Outra Senhora» -, que se revela muito desigual consoante a capacidade oratória dos protagonistas. Excelente, por exemplo, no episódio com o historiador Borges Coelho, mas de interesse bem mais limitado quando se tratou de evocar as tipografias clandestinas ou os médicos que cuidaram do moribundo Salazar.
Na série ontem estreada, porém, os testemunhos de alguns entrevistados ficaram subalternizados pelas imagens de arquivo., que permitiram o enquadramento da história sinistra da polícia política do regime. E esta decorre de uma tradição antiga, iniciada com os delatores dos tempos de D. João II e continua sucessivamente com a Inquisição, o Marquês do Pombal, Pina Manique e a polícia a soldo da ditadura de João Franco.
“Protagonista” deste episódio, o capitão Agostinho Lourenço correspondeu à típica eminência parda, que costuma acolitar todos os ditadores e se escondem no manto de secretismo, onde apreciam resguardar-se. Por vezes são mais do que um, como sucedia com Salazar, bastante menos autossuficiente do que gostava de aparentar pois contava com esse tipo de colaboradores para se incumbirem por ele das tarefas sujas, que sabia fundamentais para a sustentabilidade do regime.
Nascido numa família de aristocratas minhotos, o futuro criador e fundador da Pide passara a Primeira República a combater carbonários e a envolver-se em golpes fascistas e monárquicos (o de Sidónio Pais, o da Monarquia do Norte e o do 28 de maio de 1926). A ida forçada à guerra de trincheiras da Primeira Guerra resultara de um castigo disciplinar relacionado com essa atividade conspirativa, que não estancaria com a implantação do Estado Novo, porque seria ele a conceber todo o aparelho repressivo da ditadura assente em agentes especializados no combate ao comunismo e a outras formas de oposição, em denunciantes encapotados, que alertassem para os mínimos focos de contestação, e para as prisões em que seriam agrilhoados, senão mesmo assassinados - como no Tarrafal - os mais perigosos inimigos do regime.
Logo ao primeiro episódio atrevo-me a considera r a série como de visão obrigatória...
1 comentário:
Caro Jorge Rocha
Chamo-me Jacinto Godinho e sou o autor da série. Gostaria de o cumprimentar pelo visionamento cuidadoso que fez do primeiro episódio da série "A Pide antes da Pide". Fez uma leitura perfeita tanto do conteúdo narrativo (as complexas opções teóricas de genealogia história que me levaram a recuar tanto no tempo e que eram sobretudo para explicar a cultura do medo e da delação) como do contexto televisivo atual. Procurei efectivamente que a série tivesse um cunho investigativo lato e não meramente testemunhal ( claramente mais fácil de realizar). Gostaria apenas de referir que o apoio à investigação da Doutora Irene Pimentel foi fundamental. Espero que os restantes episódios não o desiludam.
Enviar um comentário