segunda-feira, março 27, 2023

Avisos vários para encarar o fim de algumas realidades

 

1. Do Bairro terá sido rodado durante o confinamento da pandemia - o que ajuda a perceber o deserto em que se converteram as ruas de Alfama e da Mouraria! - mas o tema do documentário de Diogo Varela Silva é o da gentrificação, potenciada pela explosão dos alojamentos locais, que apressaram o fecho de muitas associações e clubes, já ameaçados pelas mudanças comportamentais trazidas pela profusão dos canais de televisão e por tudo quanto se pode aceder via telemóvel. É que falta a população bairrista do passado e sobram comunidades vindas de diversos longes e com quem não é possível estabelecer o tipo de comunhões identitárias em tempos traduzidas em marchas populares, em bailes animados e em agitadas competições desportivas (incluindo as de sueca!).

Há a impossibilidade de fazer rodar para trás a roda do tempo e trazer de volta aqueles dias de que se esqueceram as dificuldades económicas e a opressão politica, porque deles se recordam as felizes sensações de se ser jovem e ter todo um futuro pela frente. Aquele que agora mingua, porque tudo isso acaba por ser Fado.

2. Não há felicidade sem nós! É assim que acaba A Flor e o Peixe, a mais recente proposta literária de Afonso Cruz. E o nós tem a ver connosco enquanto leitores, com os personagens em si, mas também com os outros, os que significam conexões, encadeamentos, que suscitam as histórias de cada um. Como de costume, o autor desafia-nos para os vários níveis de leitura pressentidos em tudo quanto escreve.

3. Isabela Figueiredo não se poupa a defender a Liberdade como tema maior do seu romance mais recente, Um Cão no meio do Caminho. Mesmo que sejamos impelidos a pensar na solidão como aquilo que melhor caracteriza o homem que consegue sustento do que respiga no lixo dos outros ou a mulher apostada em acumular tudo quanto lhe tem passado pela mão na vida e os conserva em caixotes sem identificação quanto ao seu conteúdo.

4. O que mais me parece paradoxal nos jovens, que se ativam na luta contra as alterações climáticas é ficarem-se pela rama do problema e não serem consequentes no essencial: na inviabilidade de evitar a anunciada distopia se não pusermos fim ao capitalismo. É ele a causa primeira das desigualdades em que assentam todos os consumismos, poluições e frustrações, que vão aquecendo - e de que maneira! - a nossa realidade.

5. Martha Argerich reivindica a noite enquanto realidade em que o tempo parece expandir-se num aparente ralenti, sendo aquele em que mais gosta de usufruir cada dia. Uma sensação, que também é a minha, quando para aqui venho às quatro da manhã e uso as horas em que tudo à volta parece paralisado para ler e escrever. As duas atividades que complementam a intenção de vivermos tão felizes quanto tempo o conseguirmos ser...

6. Por perturbadora coincidência o Mário Augusto decidiu recordar nomes grandes de Hollywood, que viveram o trágico desenlace de perderem a memória. Rita Hayworth, Gene Wilder, Ronald Reagan ou o agora vitimado Bruce Willis. O exemplo mais impressionante terá sido o de Robin Williams que, antes de se suicidar, terá deixado como legado a frase: Já não sou eu!

Não é ainda aquilo que, quotidianamente presencio, mas sei que, para tal avançamos numa cumplicidade dolorosa para a qual desejaria ver satisfeito o benefício salvífico do Amor com maiúscula. Embora o saiba apenas capaz de mitigar o que de incontornável se anuncia. 

domingo, março 26, 2023

Deturpar o que, na arte ou no clima, é natural


1. Por tudo o que representa, A Origem do Mundo de Gustave Courbet é das obras, que mais admiro na História da Arte. Porque rompeu com o puritanismo de todos os poderes políticos e religiosos dos séculos anteriores quando condenaram a inocência da representação dos sexos durante a Antiguidade grega, e depois não se cansaram de os tapar com parras de uvas, ou outros biombos visuais,  tão-só o catolicismo se impôs como fundamento da transformação em tabu de uma das mais naturais expressões da condição humana.

O documentário Cache sexes de Agnès Obadia recorre a muitas das informações contidas num ensaio rigoroso da autoria de Sylvie Aubenas e Philippe Comar no qual já se conjugavam as opiniões de historiadores, sociólogos e outros sábios, na elucidação em como a humanidade bem melhor seria sem os fantasmas e preconceitos alimentados por essa contínua intenção em verberar como pecado o que nunca deveria ter deixado de sertão natural quanto o respirar ou o alimentar-se.

2. São mistérios, que a ciência começa a compreender: porque existem desertos em África ou na Austrália e, nas mesmas latitudes, eles não surgem no leste do subcontinente latino americano? Ou porque existem furacões na América do Norte e, nas mesmas latitudes do hemisfério sul não se vislumbra nenhum sobre a Argentina?

Pascal Cuissot, que fez o ponto da situação no documentário O Mistério dos Rios Voadores da Amazónia dá voz aos cientistas, que explicam a forma como as árvores da floresta amazónica absorvem a água dos solos em que estão implantadas e criam uma espécie de fluxo de vapor de água na atmosfera capaz de incidir favoravelmente no clima de todo o planeta. O que torna ainda mais perigoso todo o fenómeno da desflorestação, que Lula dificilmente conseguirá travar. 

sábado, março 25, 2023

A Outra Veneza de Predag Matvejevitch

 

Interessante a leitura de A Outra Veneza, pequeno livro de Predrag Matvejevitch, que leva-nos para além do circuito convencional entre a Praça de São Marcos e a ponte do Rialto sobre o Gran Canale, aventurando-nos pelas periferias labirínticas da ilha principal e pelas que são menos conhecidas. Ou cuidando de temas tão singulares como o das razões dali se terem estabelecido povos invadidos pelos que, nas redondezas, os vinham saquear, ou dos muitos pães ali produzidos ao longo dos tempos de acordo com os capítulos ainda agora lidos.

Na primeira investida feita à cidade tive a disponibilidade para replicar a indagação sobre essas zonas menos exploradas, descobrindo aquelas onde raramente me cruzava com outros turistas. Mas vivendo a experiência com a pena por o fazer sozinho, sem partilhá-la com quem  sempre quis viver as experiências mais jubilatórias proporcionadas pela vida.

Depois, quando aí voltámos em família, tivemos, de facto, momentos mágicos, mas condicionados por problemas de saúde, que limitaram a exploração a pouco mais além do que aquele circuito cosmopolita, embora incluísse o fascínio da noite na cidade, quando os visitantes tinham voltado para os hotéis de Mestre e os cafés da praça principal se vestiam dos sons dos excelentes ensembles, que ali tocavam para os seus clientes.

Ficou o projeto dali voltarmos para exploração mais ambiciosa do que a cidade teria para nos mostrar. Infelizmente as circunstâncias tornam improvável o projeto. Resta vivê-la pela interposta tutela do autor jugoslavo, que aliou a curiosidade por tantos saberes com a sua tradução numa pequena obra reveladora de inesgotável erudição. 

sexta-feira, março 24, 2023

Em Salta durante o confinamento

 

Ao ver o filme de menos de quarenta minutos, que a argentina Lucrecia Martel rodou em 2020 durante a crise do covid há a sensação desse período de confinamento forçado, e de prudente distanciamento relativamente aos outros, ter ocorrido há muito tempo. Efeito da guerra na Ucrânia, que parece durar há séculos e promete prolongar-se por uns quantos mais.

Terminal Norte (2021) é, porém, mais do que uma curiosidade sobre a personalidade e obra de umas quantas copleras privadas do acesso aos palcos, porque testemunha-lhes o refugio em Salta, uma das regiões mais conservadoras do país, onde podem usufruir, no isolamento, da libertação das muitas agressões ou meras manifestações de preconceitos, que algumas delas conhecem no dia-a-dia por pertencerem ou simpatizarem com as causas das ditas minorias sexuais.

Não será uma das obras de referência na filmografia de Martel, mas também não a compromete. Bem pelo contrário! 

segunda-feira, março 20, 2023

O Montado Ibérico e o poder dos sinos das igrejas

 

1. Só agora apreciámos a coprodução luso-espanhola sobre o Montado enquanto bosque do lince ibérico. E é de enaltecer a qualidade de um documentário, que dá conta da paisagem identitária de uma região transfronteiriça onde a riqueza da vida selvagem se mostra ameaçada pelas alarmantes consequências das alterações climáticas.

Nem sequer se trata de uma destruição causada pela substituição capitalista do uso da terra por culturas mais rentáveis, como sucede noutras zonas do Alentejo: bastam as sucessivas secas e a facilitada profusão de doenças nos sobreiros e azinheiras para o precário equilíbrio atual tender para um infecundo matagal prenunciador do deserto, que ali se poderá depois impor.

O alerta para um futuro, que importa prevenir...

2. Em 2020 Stanislas Kraland realizou Notre Dame, a Catedral Eterna para explicar como a notável competência dos construtores do século XII foi determinante para poupar o monumento da sua total destruição aquando do incêndio do ano anterior. E embora chegue a ser enfadonho para quem se contentaria com uma síntese menos detalhada de todos os conhecimentos geométricos e construtivos induzidos na obra (mormente na distribuição dos esforços e na invenção dos arcobotantes), ou no enaltecimento da inédita utilização da luz exterior na iluminação do seu gigantesco interior, fica a consciencialização de como os sinos nas torres das igrejas contribuíram para expressar o poderio da igreja, que assinalava, a quem os ouvia, a convocação para os seus rituais. 

sexta-feira, março 17, 2023

Da bondade de ser egoísta

 

Às vezes vale a pena ser egoísta e só para si guardar algo de precioso cuja descoberta contenha potencialidades para repetidas fruições. Terá sido isso o que Ernest Hemingway sentiu no inverno de 1925, segundo confessou em Paris é uma Festa.

No ano anterior descobrira uma região dos Alpes austríacos onde as solitárias ascensões aos seus picos podiam proporcionar-lhe a sensação de superar-se apesar do permanente risco de avalanchas. Os habitantes de Schruns em vão o tentaram dissuadir de tão ousada insensatez, mas ele  testava as sensações dez anos depois vertidas para as personagens excitadas com a hipótese de enfrentarem a morte a cada instante em As Neves do Quilimanjaro.

Viveu um período de plena felicidade em que lhe bastava o convívio social nos clandestinos jogos de póquer a dinheiro com os rústicos habitantes da região, tão diferentes das frívolas criaturas parisienses.

Regressado a França para receber os louros da ascendente carreira literária não poupou nas palavras para elogiar a recente descoberta. O que teve efeito de boomerang: no inverno seguinte, ao querer a repetição da experiência, viu-a comprometida pela inesperada presença de muitos desses amigos, que iniciaram a transformação desse espaço selvagem na cosmopolita e gentrificada realidade, que lhe sonegariam os motivos de tão breve sedução.

quinta-feira, março 16, 2023

O Apocalipse segundo Coppola

 

São muitos os títulos cinematográficos, que ainda conto revisitar nos anos mais próximos, para reaferir a importância a eles atribuída, quando os vi pela primeira vez. Por isso as prateleiras da cave estão recheadas de DVD’s, cuja visão nem sequer congemino como ordenar na escala de prioridades para os projetar na parede da sala.

Apocalipse Now é um dos que mais me intimidam: vi-o no início da década de oitenta na pequena sala do Apolo 70 quando mais avisado andaria se tivesse preferido a sessão do Monumental, ali não muito distante, em cujo ecrã gigante encontraria espaço alargado para as imagens não se claustrofobizarem tão facilmente.

E, no entanto, nunca mais esqueci cenas, que ficaram segmentadas na memória  e esperam reestruturar-se num todo coerente nessa planeada revisão: as explosões do napalm ao som da voz de Jim Morrison a anunciar this is the end logo como aperitivo, a libertação de uma praia a pretexto de ter boas ondas para o surf, a pungente cena das playmates numa bravata quase surrealista, o sacrifício final do coronel Kurtz.

Tudo aquilo constitui um dobre de finados pelo colonialismo, que ali se perenizara na sequência da família francesa recuperada para a versão Redux, que ainda terei de descobrir. E, para além das conhecidas vicissitudes de uma produção turbulenta, recheada de episódios abordados num conhecido documentário sobre o seu making of, fica o enorme vazio de uma guerra, que se estiolou na abstração dos motivos fúteis que a justificaram e no inferno em que desesperaram os que por ali morreram, enlouqueceram ou nunca mais se libertaram dos traumas, que lhes legaram definitivo manto de tristeza na expressão dos seus rostos de veteranos.

O imperialismo, enquanto expressão aprofundada do capitalismo, tem aqui representadas as muitas das suas formas de perversão. 

quarta-feira, março 15, 2023

O vencedor dos Óscares, bicharocos hediondos e as mulheres à nossa volta

 

1. Tudo em todo o lado ao mesmo tempo. Tenho o filme congelado na cloud  desde o final de janeiro, mas ainda não tinha sentido prioritária a apreciação. Agora, a cerimónia dos Óscares deu-me estímulo corretor: as críticas e comentários ao filme são tão positivos que lá tenho de alterar a ordem por que organizo a projeção de imagens na parede da sala e dedicar-me a apreciar uma obra tida como complexa, difícil e só provavelmente compreensível nos vários níveis de leitura após repetida experiência.

2. Enquanto não dou seguimento ao partilhado e oscarizado objetivo, inicio a sós a revisão de Alien - o Oitavo Passageiro, que já não revisito desde a estreia quatro décadas atrás e do qual, mais do que a cena do peito de John Hurt a abrir-se para de lá sair hedionda criatura, fica-me a memória de dois casais a prolongarem demasiado o jantar no Bairro Alto e a correrem esbaforidos calçada da Glória abaixo para só pararem no Condes a tempo de entrarem no segundo balcão, quando estava a completar-se o genérico inicial.

Que daria para atalharmos calmamente o caminho demonstra-me esta redescoberta: vista a primeira meia-hora de filme ainda nada de relevante sucedeu! A tripulação do Nostromo acordou placidamente da hibernação, bebeu café, discutiu problemas laborais e só agora começa a investigar as circunstâncias da destruição de uma nave alienígena que fora chamada a socorrer. As cenas de suspense e de eliminação progressiva de todos os protagonistas, menos um, ficam reservadas para os próximos capítulos, quando voltar ao ponto em que os deixei...

3. Provavelmente já poderia ter visto Mulheres do meu País, seja na versão em longa-metragem, realizada em 2019, seja nos três episódios que lhe sucederam e, tanto quanto indaguei, entretanto transmitidos na RTP. Foi a primeira hipótese a que agora conhecemos, a dos 14 testemunhos de mulheres de diferentes idades, cores, culturas e profissões, colocadas perante a câmara de Raquel Freire para se desvendarem nas limitações enfrentadas e nos alimentados sonhos. Sem nada de novo a revelarem quanto às discriminações de que se sentem alvo, mas dando-lhes rostos concretos, que ajudam a dissocia-las de exemplos dos estereótipos, que poderíamos ser tentados a ver em cada uma delas.

Como balanço fica o reconhecimento da dificuldade em ser mulher numa sociedade misógina e em que, cada vitória, exige esforços admiráveis com os quais só podemos demonstrar solidária veneração. 

domingo, março 12, 2023

Apresentando Ebrahim Golestan

 

No ciclo da Cinemateca dedicado ao cinema iraniano antes da Revolução dos aiatolas - que pode ajudar a explicar a importância posterior de realizadores recentes (Kiarostami) e atuais (Panahi, Farhadi), que neles se inspiraram -, foi possível conhecer a obra de Ebrahim Golestan, mormente através de três admiráveis documentários ilustrativos da importância por ele conferida aos rostos e às paisagens.

Onda, Coral, Pedra (1961), As Colinas de Marlik (1964) e As Joias da Coroa do Irão (1965) remetem para um país muito diferente do atual, porque expurgado da omnipresença do fanatismo islâmico e dos seus valores medievos.

No primeiro filme enfatiza-se o papel dos que trabalham na indústria do petróleo. No segundo há a sintonia dos agricultores, que trabalham a terra e dos que a escavam em busca de artefactos arqueológicos. E no terceiro a história iraniana acompanha paralelamente a das joias que, com a sua encomenda ao realizador, o Banco Central pretendia promover.

Comunista ativo até 1946, altura em que decidiu dissociar-se da militância para se focalizar em projetos artísticos multidisciplinares, Ebrahim Golestan merece ser recordado, razão para se olhar com a devida a atenção para a Lição de Cinema disponível no you tube e dada na Cinemateca de Bolonha em 2016.

Aos cem anos continua a ser um dos intelectuais mais relevantes do seu país!