terça-feira, maio 31, 2022

As Noites Brancas do Carteiro, Andrei Konchalovsky, 2014

 

Uma das imagens mais reveladoras do filme de Konchalovsky acontece quase no final, quando o protagonista - Lyokha, o carteiro da aldeia à beira do lago Kenozero onde se concentra quase toda a ação - está a partilhar um cigarro com um vizinho e, nas suas costas, sobe nos céus um foguetão. Ao contrário do que sucedia em Siberíada, a maravilhosa epopeia sobre o socialismo romântico estreada em 1979 - e um dos melhores filmes dessa década! - Kontchalovsky já não ilustra um testemunho da Rússia pós-soviética a abeirar-se da Utopia (nem sequer a capitalista!). Os homens perderam-se nos copos de vodka, as mulheres preferem estar sozinhas do que mal acompanhadas e as moscas constituem incómodo contra as quais nada resulta. Os velhos vão sobrevivendo à custa de magras pensões, os generais fazem o que querem sem olharem para as leis, que as autoridades vão querendo impor sem tergiversações sobre quem anda a enganar a fome com os proibidos peixes do lago.

Se há explicação para os impasses da atual guerra na Ucrânia na falta de ânimo de uma população desalentada pela falta de perspetivas futuras, As Noites Brancas do Carteiro trá-la a lume na conformada rendição a uma realidade, que sobrepõe-se  às circunstâncias  na sua génese.

Depois de ter encarnado várias vidas - incluindo a de rodar filmes de ação com Schwarzenegger em Hollywood - o octogenário realizador russo ainda demonstra ser um grande Mestre. 

O antissemita Thomas Edison

 

Que somos às vezes iludidos pela omissão da informação essencial de que deveríamos dispor antes de nos entusiasmarmos com algumas causas demonstra-o Paul Auster no seu «Relatório do Interior», quando conta o fascínio por Thomas Edison, o célebre inventor, que vivera a poucos quarteirões do casa de New Jersey onde crescera.

Tudo no cientista o entusiasmara: a inteligência, a inventividade, a capacidade de criar negócios muito rentáveis. Por isso considerava-o muito superior a Sherlock Holmes, que fora o herói preferido desses tempos em que requisitava livros aos magotes na Biblioteca Pública local. Daí o deslumbre quando soube que o próprio pai trabalhara numa das empresas do empreendedor. Mas logo seguida da imensa deceção por saber que o emprego só durara um par de semanas, porque descobrindo a condição judaica do novo funcionário, o antissemita Edison logo o quis ver pelas costas.

Sobretudo na infância é-se, amiúde, confrontado com a evidência de existirem pés de barro nalguns dos heróis que são promovidos como admiráveis. Embora, ainda hoje, muitos adultos, continuem a comportar-se como crédulas e inocentes petizes!

segunda-feira, maio 30, 2022

Desmistificar Modigliani

 

Quando se pensa em Modigliani é quase inevitável pensar na morte precoce aos 35 anos e no imediato suicídio da sua grávida companheira e musa, Jeanne Hébuterne, então com apenas 21 anos. Mas peca por exagerado o mito, muito disseminado, do percurso de um pintor maldito, vencido pela doença e com propensão para a autodestruição. Essa imagem é falsa, porque Amedeo sempre demonstrou uma enorme alegria em viver.

Inicialmente vocacionado para a escultura - e aprender com os mestres franceses no talhar da pedra explica a mudança para Paris em 1906! - decidiria depois orientar-se para a pintura porque, através dessa expressão artística, poderia concluir mais rapidamente as obras em si imaginadas. Mas convenhamos que os retratos têm todos um lado escultórico, que decorre dessa premissa inicial. Há igualmente a expressão enigmática dos rostos, que muito se inspiraram nas obras da Renascença italiana, que Amedeo observou intensamente enquanto viveu em Livorno, Veneza e, sobretudo, Florença.

Na biografia também não foi Jeanne a única musa inspiradora. Antes dela houve  a britânica Beatrice Hastings, obsessivamente pintada entre 1914 e 1916, com quem a relação amorosa foi intensa, tumultuosa e, depois, inevitavelmente encerrada. E, embora só depois de morto tenha sido reconhecido como artista maior da sua época, nunca lhe faltaram mecenas, que lhe facilitassem o sustento, inicialmente garantido por uma pequena herança com a qual vira franqueada a mudança para o bairro da Madeleine em Paris. Cidade onde para sempre ficaria ou não seja ele um dos famosos inquilinos do cemitério do Père Lachaise!

O póstumo reconhecimento de Rousseau em Genebra

 

Não é fácil ser prior na própria paróquia, é ditado que se ajusta bem a Jean Jacques Rousseau, nado e criado em Genebra, mas dela proscrito depois do seu «Contrato Social» ofender o pensamento dominante dos conterrâneos, na maioria rendidos a um tipo de organização social assente no poder dos poderosos e na conformada submissão dos que produziam efetivamente a riqueza da cidade. Mormente essa classe dos artesãos donde provinha o filósofo e era impelida a aceitar essa condição com ajuda da igreja calvinista nada disposta a aceitar a primazia de um deus natural, tolerante e ecuménico como propunha Rousseau.

De mal com quem o rodeava, o frustrado mentor de alguns dos principais valores do Iluminismo seria nómada buscando, em vão, a paz de espírito em França ou em Inglaterra, mas condenando-se a uma solidão, que só encontraria algum consolo no efémero exílio na ilha de São Pedro no lago Bienne onde se dedicaria ao estudo de um ramo do saber então em ascendente acumulação de conhecimentos: a Botânica ou às reflexões de caminhante solitário, deixadas para serem publicadas postumamente.

E, no entanto, hoje não faltam estátuas, nem outras homenagens topográficas na cidade à beira do lago Leman. 

sexta-feira, maio 27, 2022

Pialat, Serebrennikov, Tykwer e Desplechin

 

Amiúde tenho de dar informação a amigos mais curiosos sobre onde tenho acesso a alguns dos filmes que aqui vou abordando. Em boa parte a resposta é o canal franco-alemão Arte cuja ininterrupta proposta de bons filmes vai satisfazendo a inveterada cinefilia, mesmo com o senão de suportar a dobragem em francês de muitos filmes falados noutros idiomas.

Para os próximos dias alguns títulos merecerão essa atenção:

 Van Gogh, Maurice Pialat, 1991

Incide  na estadia do pintor em Auvers-sur-Oise a partir de 21 de maio de 1890 e depois de ter estado internado em Saint-Rémy-de-Provence. O doutor Gachet é o amigo e confidente, mas Marguerite, a filha, também o atrai o suficiente para a retratar.

Dirigindo um muito competente Jacques Dutronc, o realizador quis dar do artista uma imagem depurada de psicologia e de romantismo, apresentando-o distante da inventada caricatura de pintor miserável, louco e maldito. (dia 1/6, 19.55)

Leto, Kirill Serebrennikov, 2018

Assinado por um dissidente russo aborda a cena rock na Leninegrado dos anos 80, quando grupos como o Kino e o Zoopark rivalizavam entre si e os líderes disputavam a mesma mulher.

Mais do que o tema em si a fotografia a preto-e-branco, entrecortada de algumas sequências de animação a cores, será o que mais poderá interessar-nos. (30/5 às 21.20) 

Corre, Lola, Corre, Tom Tykwer, 1998

Manny, o namorado de Lola, perde cem mil marcos, que pertencem a um bandido, apostado em reaver-lhos, mesmo que da forma mais cruel. Razão para que se afirme pronto a assaltar um supermercado. Só que Lola pondera em três alternativas possíveis, todas explicitadas num ritmo frenético e com recurso a opções estéticas distintas:  o formato 35 mm para a ação principal, o vídeo para os secundários, o desenho animado para a introdução de cada uma das três histórias, o preto-e-branco para os flash backs, para além dos frequentes ralentis ou acelerações de imagem. Um regalo para o olhar se não nos incomodar a histeria techno punk. (1/6 às 00.20)

Um Conto de Natal, Arnaud Desplechin, 2008

Logo à partida há o casting, que inclui Catherine Deneuve, Mathieu Amalric, Melvil Poupaud, Chiara Mastroianni, Emmanuelle Devos ou Hippolyte Girardot. E depois há uma família reunida pelo Natal para aferir qual dos membros tem uma medula compatível para salvar a vida a Junon em quem se manifestou uma galopante leucemia. Mas entre esses filhos e netos reunidos na casa de Roubaix existe uma latente conflitualidade, que lembra uma trama shakespeareana entre o burlesco e o trágico. (site ArteKino)

quarta-feira, maio 25, 2022

Diários de Otsoga, Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, 2021

 

O que sabemos, ao confrontarmo-nos com os filmes de Miguel Gomes - neste caso específico coassinado por Maureen Fazendeiro -, é a conveniência de assumirmos a abertura de juízo, que nos dissocie da ideia de estarmos perante obras convencionais. E isso é sempre o que mais estimula a nunca faltarmos à chamada sempre que se nos depara a oportunidade de os descobrirmos.

No verão de 2020, em plena pandemia e com outros projetos adiados, os realizadores, os atores e a equipa técnica fecharam-se numa casa perto da praia do Magoito e rodaram uma história sobre três amigos - Crista, Carloto e João - que partilham a construção de um borboletário. Mas, logo se compreende que a ideia de ficção mistura-se com a presença frequente de quem estaria , em principio, atrás da câmara e se posta diante dela em conversas sobre a ideia de filme construído como um work in progress com um lado making of. Há a contagem decrescente dos dias neles se multiplicando os paradoxos aos quais nem sequer falta a referência à gravidez de Maureen e a um conto de Pavese, que lhe acentua a influência mediterrânica. Ou a possibilidade dos realizadores se ausentarem durante um dia por causa de uma ecografia transferindo para os atores a continuidade da rodagem.

Sobre o filme João Lopes escreveu que Crista, Carloto e João são herdeiros tardios de Robinson Crusoé, náufragos das nossas queridas "sociedades de consumo", que vivem o isolamento imposto pela pandemia como uma redescoberta da possibilidade de estabelecer alguma relação com os elementos naturais: o sol, o vento, a vegetação, os animais. Que chegam a remeter os atores para um papel secundário... 

terça-feira, maio 24, 2022

Uma incontornável atração

 

E se a missão Apollo 11 tivesse começado a ser preparada no século XVII? A hipótese não é assim tão estapafúrdia pois terá sido nessa altura que Luís XIV mandou construir o Observatório de Paris, iniciando-se a detalhada cartografia da Lua, mesmo que um dos mais talentosos cientistas envolvidos nesse trabalho, Cassini, não se eximisse de desenhar algumas formas mais devidas à sua liberdade imaginativa do que ao efetivamente observado pelas lunetas então disponíveis.

A atenção dada aos astros, e particularmente à Lua, vem, porém de passados mais distantes. Conhecemos o interesse da civilização mesopotâmia pelos movimentos nos céus, erguendo para tal os zigurates, que possibilitaram-lhes pontos de observação mais próximos. E, mesmo na Europa, há a prova documental do disco de Nebra, encontrado na Alemanha em 1999, e onde estão representados o Sol, a Lua e as Plêiades naquele que, mais do que um objeto ritualista ou uma joia ornamental poderá ter configurado, há cerca de 3600 anos, um ancestral relógio astronómico destinado a definir a data adequada para as sementeiras.

A Lua suscita desde sempre uma incontornável atração para a humanidade, que tarda em retomar o abandonado projeto de a estudar in loco. 


segunda-feira, maio 23, 2022

Dois pintores no Massachusetts

 

No Massachusetts dois dos grandes pintores norte-americanos do século XX encontraram inspiração para criarem algumas das suas obras mais conhecidas: em Cape Cod Edward Hopper encontrou paisagens suficientemente aliciantes para dar outra expressão aos sentimentos de solidão e melancolia associados às que pintou em Nova Iorque. Passando os verões à beira-mar na península ligada à indústria de pesca, que tantos açorianos atraiu, aí comprou uma vivenda em madeira semelhante, em arquitetura, às que foi buscando nos seus passeios de carro pela região, quase sempre acompanhado pela mulher, a também pintora Josephine Hopper, procurando os enquadramentos mais aliciantes para depois os reverter para a tela, depurando-os de tudo quanto não fosse essencial para o sentido a ela conferido.

Numa ilha ao sul dessa península passou Jackson Pollock quatro verões em casa do casal Benton, servindo-lhe Thomas de mentor - apesar de apostar no figurativismo como estilo - e Rita de cúmplice nas experiências em cerâmica.

Embora a paisagem o levasse a replicar as opções estéticas do seu anfitrião, depressa Pollock evolui para o abstracionismo, inventando o dripping, ou seja a projeção de tinta para a tela colocada em posição horizontal e com a qual, nem o pincel ou trincha, chegavam a entrar em contacto.

As paisagens massachusettsianas não tinham, na época em que Hopper ou Pollock aí viveram, o glamour das décadas seguintes, quando foram tomadas de assalto para as férias estivais de presidentes (Kennedy ou Obama) e de vedetas de Hollywood. Eles reproduziram-nas em quadros que, no primeiro caso, se inseriam na lógica do conjunto da obra já dele conhecida, e no segundo foi ponto de partida para tudo quanto depois produziria. 

Qual o odor da Lua?

 

Foi há cinco anos - estávamos ansiosos por aí conhecer a neta mais nova prestes a nascer! - que o artista alemão Hagen Betzwieser apresentou em Amesterdão a performance sobre o odor da Lua. Uns balões a sobrevoarem umas dezenas de participantes convidados a rebentá-los para terem uma noção do cheiro, que tem a Lua.

Preparado por perfumistas de acordo com os eflúvios da poeira trazida pelas botas dos astronautas das missões Apollo, lembrava uma mistura de pólvora, serradura e ovos podres, que Edwin Aldrin reconheceu muito semelhante à real.

Demonstração das muitas formas como os artistas se viram inspirados pela Lua, essa obra de quem aspirara a ser astrofísico na adolescência, mas depois reconhecera maior interesse na representação da divulgação dos seus temas, também pode suscitar muita discussão sobre os rumos assumidos pela arte contemporânea. Não deixa margem para dúvidas é quanto ao fascínio suscitado por um astro, que os meteoritos moldaram nos muitos milhões de anos em que nele incidiram, alterando-lhe a feição das crateras e respetivas sombras, que permitiram à milenar civilização chinesa ali ver uma lebre de enormes orelhas ou um crocodilo aos africanos da costa atlântica.

Menos imaginativo, Galileu detalhou-a com a sua luneta e deu-lhe aprofundadas descrições sob a forma de textos e de desenhos no seu Sidereus Nuncius, publicado em 1610 e que melhor conhecemos como O Mensageiro das Estrelas.

Desconhecemos se o sábio italiano ponderaria na curiosidade odorífera, que interessou Betzwieser, mas devemos-lhe o primeiro tratado sobre como é, de facto, esse nosso companheiro cósmico.

Dois anos em que Lee Miller foi modelo de moda

 

Na intensa e diversificada biografia de Lee Miller existe a importância do acaso na definição de alguns dos seus mais importantes momentos biográficos. Por exemplo a forma como viu-se projetada à condição de ser uma das principais modelos da Vogue depois de conhecer o seu editor, o famoso Condé Nast, da forma mais singular: estava ela com 19 anos, quando se viu atropelada numa das ruas de Manhattan e o condutor pôs-se em fuga para escândalo dos que por ali passavam. 

Casualmente foi o jornalista quem a socorreu e nela identificou um tipo de beleza, que se ajustava ao ideal feminino explorado pela revista. Foi assim que, a 15 de março de 1927, fê-la aparecer na capa da revista, logo conferindo-lhe imediata notoriedade e tornando-a na modelo preferida dos mais conhecidos fotógrafos de então, mormente o influente  Edward Steichen.

Nos dois anos seguintes Lee viveu intensamente essa fase da sua vida antes de pular para a que se seguiria.

sábado, maio 21, 2022

Para quando o regresso ao tal pequeno passo?

 

Foi há mais de quatro mil milhões de anos: num universo ainda demasiado caótico, apesar de se ter expandido do Big Bang no dobro desse tempo, a Terra colidiu com outro planeta e, desse embate cataclísmico, nasceu a Lua como se filha natural de um parto cósmico.

Hoje podemos considerar que partilhamos com ela o nosso ADN. Será por isso que ela tanto nos atrai, dando-nos o ensejo de sonhá-la, descrevê-la, cantá-la, pintá-la, enquanto, ao mesmo tempo, sabemos que sem ela não existiríamos?

Olhando-a, porventura ao mesmo tempo que escutamos o maravilhoso «Claire de Lune» de Claude Debussy, também podemos filosofar sobre a vida, a mudança, o nascimento e a morte. Porque, todos os meses, vemo-la renascer para a contemplarmos, sabendo-a a três dias de viagem de onde estamos.

Cinquenta anos passados sobre as viagens tripuladas, que possibilitaram a uma dúzia de privilegiados senti-la bem real, vão marcando passo os projetos destinados a seguir-lhes os passos!

O Clair de Lune de Debussy

 


As seis, oito, dez desconhecidas vidas de uma mãe

 

Pode um filho concluir que quase tudo desconheceu sobre a mãe, que sempre imaginara silenciosa dona-de-casa, pouco afetuosa e com inquietante propensão para se embriagar? E que, por isso mesmo, a sua morte não lhe terá suscitado grandes estados de alma, porque, há muito, dela se distanciara?

Pode-se por isso mesmo imaginar a surpresa de Antony Penrose quando viu a esposa vir do sótão com o conteúdo resgatado de prateleiras cobertas de pó e constituído pelas provas fotográficas das seis, oito, dez vidas por encarnadas por essa progenitora antes dele nascer. Porque aquela a quem já nada poderia perguntar, por ter desaparecido sem quaisquer sobressaltos necrológicos a nível mediático, fora afinal a bem sucedida modelo da Vogue no final dos anos 20, a musa dos surrealistas franceses na década seguinte, a mesma em que ela própria criou obra notável enquanto fotógrafa, depois reorientada para repórter de guerra, quando os Aliados preparavam-se para derrotar o nazismo.

Antony encontrou então o ensejo para o grande projeto da sua vida: tudo descobrir sobre a progenitora e biografá-la de forma a devolver-lhe a justa notoriedade devida ao seu talento. De alguma forma reconciliando-se com uma parte desconfortável do seu próprio passado. E assim pudemos reencontrar a esquecida obra de um dos grandes nomes da fotografia do século XX: Lee Miller.

 


sexta-feira, maio 20, 2022

Adeus Filipinas, Jacques Rozier, 1963

 

No contexto da nouvelle vague Jacques Rozier faz figura de cineasta maldito com uma carreira, que se resumiu a poucos filmes, porque a este - que tantos dissabores lhe causaram com os produtores e distribuidores - só se sucederam Du Côté d’Orouet em 1971, Les Naufragés de L’île de la Tortue em 1976, o Maine Océan em 1975 e o Fifi Martingale em 2001.

Misturando temas e formas de os abordar, nele produz uma meditação sobre a morte e a destruição, referindo-se explicitamente à guerra da Argélia antes de Godard o vir a replicar em Le Petit Soldat. Entre a falsa ligeireza e o confronto moral entre o velho e o novo, este é filme, que tanto foi odiado como incensado, embora só tivesse exibição não comercial entre nós muito depois da Revolução de Abril.

O Traidor, Marco Bellocchio, 2019

 

Era pesado o clima que se sentia em Palermo, quando ali passei no verão de 1989. Estavam na ordem do dia os julgamentos dos mafiosos denunciados por Tommaso Buscetta, nomeadamente do tenebroso Totó Riina, chefe dos Corleone, e o juiz Falcone era visto como herói pela maioria dos italianos, mas execrado por todos quantos lucravam com a corrupção instituída como prática corrente em todos os negócios lucrativos, quer lícitos, quer ilícitos. E sabemo-lo de há muito: alguns dos mais conhecidos políticos da direita estavam enfeudados a essa organização clandestina, dotada de um «código de honra» muito peculiar.

Na abordagem a esses factos históricos, Bellocchio ignora ostensivamente os cânones estabelecidos pelos cinema norte-americano para aquele que se tornou um dos seus mais glosados géneros. Não há endeusamento, nem sequer a mínima simpatia pelos criminosos. Quer denunciante, quer denunciados, são mesquinhos nos interesses e comportamentos. Anseiam por dinheiro e poder escusando-se a assumir o mínimo escrúpulo. E é com essa realidade, que Falcone se confronta, ademais igualmente ameaçado pelo poder político e pela sua hierarquia, que antipatiza ostensivamente com a sua estratégia e métodos.

Bellocchio foi hábil em apoiar-se em dois excelentes atores para os protagonistas do filme: Pierfrancesco Favino é um Buscetta, que vê a cupidez ameaçada pela ainda maior ganância dos rivais e nem quando foge para o Brasil se exime de ameaças, que não poupam os amigos mais próximos e quase o vitimizam. Fausto Russo Alesi é o persistente Falcone, sempre a agir no fio da navalha, ciente de quanto fica com a vida em risco só por querer levar a missão até ao fim.

Lamente-se, porém, que a Itália não tenha mudado tanto quanto o combate à corrupção pressuporia possível. Tanto mais que as extremas-direitas, filiadas nesse cancro social, continuam a ter um ascendente político, que as inábeis esquerdas não têm sabido contrariar.