segunda-feira, abril 23, 2018

(DL) Ryszard Kapuściński entre o Quénia e Zanzibar


Ainda mal se instalara em Dar-es-Salam já Ryszard Kapuściński se via acometido de malária, que o manteve semanas a fio preso a uma cama de hospital. E, logo de seguida, viu-se vitimado por um efeito complementar da fragilidade física do seu corpo: contraiu tuberculose.
Era grande o risco de ter de regressar a Varsóvia, pondo termo a uma experiência em que ele, e a redação do seu jornal, tanto se tinham empenhado. Sobretudo, porque escasseava o dinheiro para pagar os dispendiosos custos no hospital para brancos.
Valeu-lhe então o dr. Doyle, um irlandês, que lhe franqueou as portas numa clínica para negros sem vintém, que aí obtinham cuidados gratuitos. Apesar da modéstia do barracão onde ia diariamente receber uma injeção, que lhe suscitasse a remissão dos sintomas, Ryszard teve outra vantagem com essa alternativa: os negros com quem aí passou a privar viam-no como um igual e  tratavam-no como tal. Que constituiu forma mais expedita de melhor os conhecer.
Foi assim, que descobriu um paralelismo perturbador entre brancos e negros. Quer no continente europeu, quer no africano, as perguntas mais estranhas que lhe faziam, sobre as suas experiências num e noutro lado, versavam a questão de saber se existiam por ali muitos canibais, todos comungados no temor de serem comidos pelos que possuíam cor diferente.
Do lado africano esse temor relativamente aos brancos encontrava perfeita fundamentação nos horrores por que passavam os escravos nas duras travessias oceânicas, em que grande parte deles perdia a vida.  Não deixando de ser triste referência comum, quando o assunto vem à baila, o da efetiva responsabilidade dos negreiros portugueses nesse comércio ignóbil, que explica em boa parte o enriquecimento da Coroa enquanto o negócio floresceu. Como ainda sobram tantos mistificadores, que insistem no papel dos Descobrimentos como meros veículos de afirmação da fé e do Império?
A escala seguinte de Kapuściński  será a ilha de Zanzibar por nela ter ocorrido um golpe militar, que alterou quem doravante conduziria os destinos políticos do maioria da população: escorraçado o sultão árabe foi um africano de gema, quem decidiu tomar conta dos acontecimentos. Mas, hospedado num hotel da ilha cuja proprietária era uma velha senhora polaca, o repórter orienta preferencialmente a atenção para os traços da arquitetura colonial, que espelhava bem a condição de entreposto ali existente para facilitar o comércio esclavagista para os portos do Médio Oriente e da Ásia.

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