quinta-feira, abril 19, 2018

(C) A memória traumatizada na análise de Cyrulnik numa conferência em Nantes


Quando alguém passa por uma situação traumática a primeira reação é ficar tolhido, incapaz de reagir. O sintoma pós-traumático diz respeito a quem fica preso nesse instante, ficando dele prisioneiro, incapaz de deixar a memória evoluir para os acontecimentos posteriores.
A vítima desse sintoma ganha uma observação microscópica de tudo quanto se encara, procurando interpretar na mínima expressão facial de um eventual interlocutor o indício de repetição dessa experiência dolorosa. Existe, pois, uma grande diferença entre quem tem a memória sã e a que está traumatizada. Porque o dotado da primeira fica indiferente a sinais, que o da segunda não deixa passar despercebido, interpretando-o de acordo com a obsessão, que o move. Mesmo que essa leitura se revele ilusória, como sucedeu com os alunos presentes na sala de aula, quando o Unabomber nela irrompeu com um colete de explosivos à cintura, ameaçando a vida de todos.
Nessa altura a professora teve a presença de espírito para convencer os miúdos em como tudo não passava de um jogo em que eles teriam de se sujeitar a algumas regras divertidas. Ao mesmo tempo conseguia neutralizar o bombista, falando com ele, ao mesmo tempo que alertava as autoridades que, a seu pedido, lhe fizeram chegar um termo com café, que ofereceu ao intruso. Aceitando-o, ele ingeriu o forte narcótico, que o tornou inofensivo no momento do ataque das forças especiais da polícia. Ora, posteriormente, os estudos feitos nessas crianças demonstraram que o seu trauma estava relacionado com a violência do ataque policial e não com o bombista, visto por eles como alguém com quem se haviam divertido. Trata-se pois de um exemplo lapidar de como a nossa memória presta partidas, que dificilmente conseguimos desmontar. Sobretudo nos bebés ainda privados da capacidade de se expressarem pela palavra, porque o terror de serem afastados de tudo quanto constituíam as suas referências, mormente a presença consoladora da mãe, suscita-lhes uma reação fisiológica imediata se esse trauma persistir por algumas semanas: a atrofia cerebral.
Boris Cyrulnik constatou isso mesmo nos orfanatos romenos, com que trabalhou depois da queda de Ceausescu, e que eram tidos falsamente como crianças autistas: não sociabilizadas reagiam aos cuidados dos que vinham ajudá-las com reações que estes últimos não esperavam, porque até o esboço de uma carícia era por elas visto como o prenúncio de um ato violento, de que se deveriam defender.
Curiosa, igualmente, a diferença constatada entre soldados franceses em missão no Afeganistão e com quem se procedeu a uma experiência curiosa: os que estavam incumbidos de sair da zona protegida do quartel deveriam escrever uma carta a quem quisessem (normalmente acabava por ser a mãe ou a esposa), só decidindo pelo seu envio, quando regressassem de tal operação.
Curiosamente, e apesar da violência, que praticavam ou à qual reagiam, muitas vezes com vítimas de parte a parte, quase não se lhes constataram sintomas pós-traumáticos, porque, pela escrita haviam criado uma representação de si mesmos num contexto sobre que passavam a ter alguma forma de controlo. Pelo contrário nos colegas que se mantinham relativamente protegidos no quartel, mas sujeitos à imprevisibilidade de um ataque para o qual poderiam sempre reagir, acautelando-se atrás das muitas barreiras de proteção ao seu dispor, a frequência desses sintomas tornou-se muito mais significativa, porque, sem esse exercício de representação de si mesmos naquele ambiente, viviam obsessivamente a aleatoriedade desses possíveis ataques.

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