sexta-feira, abril 20, 2018

(DL) Hemingway em Cuba


Há uns dias revisitámos a estadia de Ernest Hemingway em África. Dali ele trouxera vivências bastantes para criar algumas obras de referência. Desta feita passamos para a abordagem dos vinte anos por ele vividos em Cuba, onde escreveu uma das suas mais conhecidas obras-primas («O Velho e o Mar»), que terá sido determinante para que lhe fosse atribuído o Prémio Nobel em 1954. Mais do que as paisagens naturais, capazes de o mergulharem num deslumbramento permanente, Hemingway privilegiou as experiências humanas com quem lá vivia.
Havana tinha o encanto da arquitetura herdada dos conquistadores espanhóis e, ao mesmo tempo, a atmosfera decadente dos anos cinquenta antes de Fidel Castro liderar a Revolução, que viraria de pantanas a realidade política existente então.
O escritor começara por conhecer a capital cubana em 1928 e a paixão fora imediata apesar de se tratar de um espaço citadino controlado pela mafia. Os casinos, os bares, os cabarés e os prostíbulos estavam por todo o lado e aí acorriam os norte-americanos para usufruírem as fortes emoções de um quotidiano muito diferente do seu, condicionado pelas restrições morais das Ligas da Virtude.
Nos dez anos seguintes Hemingway volta à ilha crocodilo com regularidade até decidir nela sedentarizar-se a partir de 1939. Atraia-o o mar e a pesca ao espadarte, que seria tema incontornável da referida obra, bem como a boémia noturna, que tanto prezara na estadia em Paris. A disponibilidade para escrever era plena e a ela se entregava com deleite, quando voltava para o Hotel Ambos Mundos, onde estava alojado. Entre duas saídas para o mar ia escrevendo, virado para a janela do quarto de onde via a Catedral e a antiga residência do governador colonial.
A opção de ali se instalar coincidia com uma das suas mais amargas depressões, porque assombrada pelo medo da morte, que lhe tinha levado tantos amigos nos campos de batalha onde andara a fazer reportagens jornalísticas. Nomeadamente em Espanha, onde, nesse ano, Franco conseguira instalar-se no poder. A vitória fascista fechara-lhe definitivamente as portas desse país, tão amado que lhe fora natural o alistamento para colaborar com os republicanos.
Cuba tinha duas vantagens imediatas: lembrava essa Espanha perdida, mas nela também ali encontrava muitos exilados, ali chegados quando a derrota se tornara irreversível.
Cuba garantiu-lhe a serenidade, que tanto necessitava, possibilitando-lhe os prazeres da pesca, dos combates de galos, dos jogos de pelota basca ou de basebol. A paixão pela cidade, e pelos habitantes, que a mantinham em estado de ebulição, não cessaria de crescer. Quase todos os dias ia ao bar Floridita na concorrida rua Obispo, instalando-se no último lugar do balcão junto à parede do fundo para, desde as dez da manhã, pedir um duplo daiquiri. Em «Ilha à Deriva» escreveria sobre aquele espaço de predileção, garantindo-lhe fama imorredoira.
Quando começou a sentir exagerada a ocupação do tempo em atividades não diretamente literárias, arranjou refúgio a onze quilómetros da capital, na pequena aldeia de San Francisco de Paula, onde adquiriu uma mansão colonial do século XVIII com o nome de Finca Vigia. A escolha fora da sua terceira esposa, Martha Gellhorn, que conhecera na Guerra Civil Espanhola, mas depressa se rendeu ao espírito do lugar, que passou a considerar como efetivamente seu. As árvores, que lhe davam fruta todo o ano e lhe proporcionavam a paisagem oposta ao do bulício citadino serviu-lhe de fonte de inspiração, sendo vários os romances ali criados, o primeiro dos quais, «Por Quem os Sinos Dobram» de 1940, lhe facultou o almejado desafogo financeiro com a quase imediata adaptação cinematográfica.
Em Finca Vigia recebeu muitos amigos do mundo do cinema, como Ava Gardner, Ingrid Bergman ou Gary Cooper, mas também os mais humildes, que tinham a porta aberta para descobrirem a propriedade, mas sobretudo conseguiam  a oferta do dinheiro necessário para os medicamentos de que precisavam.
Com o amigo Gregorio Fuentes partia para o mar regularmente a bordo do iate que adquiriu, o «Pilar». Esse companheiro serviu-lhe de inspiração para o romance do pescador, que conseguia o maior espadarte alguma vez visto por aqueles mares, mas que não conseguia poupar à voracidade do ataque dos tubarões.
O primeiro encontro de Hemingway com Gregório ocorrera em 1928 numa altura em que o escritor saíra sozinho para o mar e uma tempestade deixara-o à deriva sem carburante. Seria Gregório, capitão de um barco de pesca a rebocá-lo em segurança até ao porto de abrigo. Dez anos depois, quando se decidira a ficar em Cuba, Hemingway procurara o seu providencial salvador para que trabalhasse para si. O que se verificaria durante os anos seguintes.
«O Velho e o Mar» constituiu uma espécie de vingança, que Hemingway aplicou aos críticos, que o tinham declarado completamente esgotado na inspiração. Publicado na íntegra na revista «Life» em 1952 receberia o Pulitzer do ano seguinte, sendo logo depois consagrado pela Academia sueca. Nessa altura já em Cuba era tratado afetuosamente de «Papa Hemingway» por o saberem testemunha fiel do carácter festivo dos seus habitantes. Hoje, nos locais por ele frequentados, encontram-se estátuas, fotografias e outra memorabilia a homenagearem-no. Para o povo é um mito grato por ele próprio se ter considerado um cubano adotivo. Por isso o celebram ao lado dos grandes heróis da Revolução, equiparando-se-lhes no merecido afeto.
Hemingway partiu de Cuba em 1960, um ano antes de se suicidar.

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