domingo, abril 29, 2018

(DL) Kapuściński: uma coragem muito para além da sensatez


Nas sucessivas passagens por Lagos jamais me arrisquei a ir a terra tão inquietantes eram os conselhos dos agentes sobre os perigos de eventuais surtidas para lá dos portões do porto. Numa dessas passagens pela capital nigeriana até houve necessidade de contratar uns guardas vindos de uma região distante que, munidos de arcos e flechas, impediriam qualquer assalto ao navio.
Daí que só possa admirar a enorme coragem do escritor Ryszard Kapuściński que, nos anos sessenta, decidiu ali viver num dos muitos bairros pobres, escusando-se à vida de correspondente ocidental sempre estacionado nos hotéis de luxo ou, pelo menos, nas zonas residenciais da nova burguesia criada pela corrupção pós-independência.
Os assaltos à sua casa eram quotidianos, mas que fazer quando isso correspondia à lógica local de, através de tal espoliação, garantir um nivelamento social entre os que tivessem mais e menos? Como lhe afiançou um muçulmano, com quem abordou a situação, conquanto ninguém o ameaçasse fisicamente, essa apropriação coletiva dos escassíssimos bens até corresponderia a uma forma de aceitação da sua singular presença naquele ambiente exclusivamente africano. Representava uma inequívoca prova da sua integração, enquanto estrangeiro, num espaço assim sentido doravante como também legitimamente seu.
Os perigos de perda da vida do escritor não se restringiram, porém, aos da violência permanente nas cidades para onde migravam milhares de camponeses pobres em busca de melhor vida e depressa descobriam o logro de tal intenção. Ryszard viveu experiência radical no deserto mauritano quando, apanhando boleia de um camionista, se viu com ele perdido no meio de nenhures, e o veículo avariado. Foi assim que conheceu a experiência da sede extrema, aquela que baralha os sentidos e o pôs a ver jardins verdejantes e lagos azulados onde antes só havia areia. E, nesse universo de privações absolutas, também nos dá conta da fome assassina presenciada na Etiópia em 1975 quando uma seca fez subir os preços e tornou inacessíveis os alimentos à grande maioria da população de regiões apartadas da capital, apesar de viverem num país capaz de produzi-los em quantidades suficientes para que nenhuma delas morresse de forma tão impressionante.
A leitura de «Ébano» prossegue, assim, lentamente, saboreando com contenção de gourmet, as estórias colhidas em África por um repórter de exceção para quem a escrita obrigava a testemunhar e a sentir na pele o que nela vertia, nunca se cingindo ao diz que disse de quem quer que fosse.

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