quinta-feira, abril 26, 2018

(DIM) A importância de nunca perder o sentido da realidade na ficção mais inverosímil


O que distingue um bom filme de outro que o não é? Podem-se dar milhentas respostas a esta questão, mas peguemos num exemplo elucidativo facultado por quem era, efetivamente, um mestre: Alfred Hitchcock.
Numa entrevista concedida a Truffaut ele lembra a celebérrima cena de «Intriga Internacional» (1959) em que Cary Grant é atraído a uma paisagem desértica e o espetador adivinha a forte possibilidade de ali ele vir a ser abatido.
Começa pela estranheza do plano visto de cima em que é apenas um pequeno ponto no meio do nada, mudando então a câmara para a paragem do autocarro onde ficara à espera do encontro para aí aprazado.
Conjeturando como se desenvolveria a cena num filme convencional, Hitchcock sugere que se passaria numa rua citadina à noite, quiçá com a calçada batida pela chuva abundante. O protagonista esperaria debaixo de um candeeiro e a tensão assim suscitada seria a de muitos filmes de terror. Alguém espreitaria de uma janela, um gato fugiria encostado à parede. Adivinhar-se-ia o iminente aparecimento da limusina com gangsters a descarregarem os cartuchos das suas espingardas.
Em vez de repetir esse cliché Hitchcock inova, escusando-se a criar esse ambiente noturno apenas iluminado a candeeiros. Em vez disso uma vastidão a perder de vista iluminada por um sol intenso.
O público pensará então: de onde virá a inevitável agressão? Pensa-se na possibilidade do avião, mas ainda é cedo para o fazer surgir, porque o realizador ainda irá baralhar-lhe os cálculos. Primeiro com o aparecimento da limusina preta, que o faz pensar: “lá está! Aí vêm os gangsters aos tiros!». Mas ela passa por Cary Grant e nada sucede, voltando a desaparecer no sentido contrário ao que a víramos aparecer.
É a vez de manifestar-se um outro carro, que deixa um desconhecido na paragem do outro lado da estrada. Cary Grant olha-o, o espetador pensa que será o provável agressor, mas, pelo contrário, ele apenas surge para chamar a atenção ao protagonista para a bizarria de, à distância, se ver um pequeno aeroplano a sulfatar campos não cultivados. Aparece o autocarro em que o outro entra e volta a deixar o protagonista sozinho no campo visual, desta vez sim, ameaçado pelo avião, que vem picar sobre ele e lhe lança pesticidas quando se acolhe entre as espigas de milho.
Mandando parar um autotanque, Cary Grant vê o avião vir embater-lhe na traseira, obrigando-o a escapar-se o mais rapidamente possível com os dois motoristas para evitar o impacto da explosão, que conclui a cena.
Tudo isto para corroborar o que Hitchcock afirma: por muito que arrisque na inverosimilhança, como se se tratasse de um pesadelo, um filme deve ser suficientemente credível, baseando-se em possibilidades reais para que os espetadores se lhe rendam, acreditando piamente no que perante os seus olhos se passa...

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