sábado, abril 21, 2018

(DL) Gustavo Pacheco: uma descoberta, que se anuncia assaz prometedora


Em 1977 os visitantes do Jardim Zoológico de Lisboa depararam com um homem encerrado numa jaula onde esperariam encontrar chimpanzés ou orangotangos. O incómodo suscitado por essa equiparação do ser humano aos seus congéneres primatas era o objetivo da performance de Alberto Pimenta, o escritor, que ensaiava em tal performance a relativização das diferenças entre seres afinal tão próximos, conforme a análise dos respetivos genomas demonstraria ulteriormente.
Lembrei-me dessa experiência ao iniciar a leitura de «Alguns Humanos» de Gustavo Pacheco, antropólogo e diplomata, que acaba de ver esse livro publicado pela Tinta-da-China.
«Dohong», o primeiro conto do livro, tem por protagonista um orangotango da ilha de Bornéu que, no início do século, convive com um pigmeu africano no Jardim Zoológico do Bronx, onde ambos estão enclausurados para entretenimento das multidões de basbaques atraídos pelo exotismo das regiões distantes.
Seguem-se depois muitas outras estórias - ainda por desvendar, mas decerto tão encantatórias quanto a primeira. Nelas encontrarei o escravo aterrorizado ao longo da viagem atlântica, temeroso de se ver comido por aqueles brancos em quem imagina hábitos antropófagos, o índio sul-americano convertido em criado pessoal de um aristocrata alemão, que o exibe como “objeto” na sua corte ou o ladrão convertido em burocrata chinês e potencialmente elegível como próximo Dalai Lama
José Mário Silva, cujo artigo no «Expresso Revista» me abriu o apetite para uma descoberta literária, que não imaginava revelar-se tão compensadora, escreve: “Pacheco interessa-se muito pelo que torna humanos os humanos e pela natureza dos preconceitos e enviesamentos históricos que foram moldando o modo como olhamos para a variabilidade biológica e cultural do Homo sapiens”.     

Um excerto de aperitivo para uma leitura que se anuncia jubilatória: 
Primeiro veio a febre. Depois, a falta de apetite. A febre foi embora logo, mas a falta de apetite continuou. Esses sintomas não eram especialmente dignos de nota, e não foram notados por ninguém. No entanto, os dias passaram e Dohong foi ficando cada vez mais ensimesmado e deprimido. O desinteresse pela comida foi se tornando desinteresse por tudo o mais. Onze dias depois de a febre ter ido embora, ela voltou, mais forte, acompanhada por secreções purulentas nos olhos e no nariz. Sem comer, Dohong enfraquece rapidamente.

Dohong era pequeno demais para se lembrar, mas Sikey também sofreu de falta de apetite pouco antes de morrer. Nada menos de trinta pratos diferentes tinham sido preparados especialmente para ela ao longo de uma semana, e Sikey rejeitou todos. Às vezes tinha acessos de cólera, berrava e jogava os pratos em quem aparecesse pela frente, mas na maior parte do tempo ficava quieta com seus pensamentos, com a cara solene de quem se acha com a razão, os olhos encovados faiscando. Dohong, uma miudeza, agarrava o cabelo vermelho de Sikey com seus dedos pequenos mas firmes, e observava com terror o mundo ao seu redor.
Quando ficou claro para todos que a morte de Sikey era apenas questão de tempo, e que Dohong definhava junto com a mãe, tiveram que separá‑los. A fúria de Sikey alcançou dimensões bíblicas, e quem testemunhou seus ataques de brutalidade desesperada jamais se esquecerá deles. Logo o cansaço a venceu, e ela passou três dias sem comer e sem se mover, até expirar calmamente. Após a morte de Sikey, Dohong ficou duas semanas entre a vida e a morte, e houve quem anunciasse que estava tudo perdido. No entanto, o bebê aceitava pequenas quantidades de leite, e começou a ganhar peso, de forma lenta mas contínua. Dois meses depois, já comia frutas e mingau de arroz. Era um sobrevivente.

Deitado no chão áspero, debilitado e sentindo que os músculos fogem ao seu controle, Dohong sofre a mesma inapetência que sua mãe padeceu antes de morrer, mas agora a causa é outra. Sikey morreu de desgosto. Deixou‑se extinguir, vencida pela tristeza do exílio. Dohong não teve tempo de conhecer sua terra natal. O que vai matá‑lo não é a saudade, mas um surto de cinomose, que antes de ser descoberto e combatido matará mais cinco de seus companheiros de jaula.
É sabido e consabido que todo ser humano, no momento da morte, revê sua vida inteira em um instante infinitesimal, como se fosse um filme em altíssima velocidade. Porém, cego por sua soberba de espécie que se crê especial, o Homo sapiens ignora que o mesmo acontece com todos os primatas superiores, incluindo, é claro, os orangotangos. É o que Dohong vai descobrir agora.
Dohong vai morrer com seis anos. É pouco, muito pouco, já que um orangotango em cativeiro pode atingir dez vezes essa idade. No entanto, e apesar de ter passado a maior parte de sua vida no Zoológico do Bronx, Dohong viveu o bastante para ter o que lembrar na hora de sua morte.

Dohong não tem lembranças das florestas de Kalimantan, onde foi capturado aos três meses de idade, junto com sua mãe. Nem da longa e dura travessia nos porões abarrotados do Graf Waldersee, com mais 740 humanos que, como ele, começariam vida nova no Novo Mundo, no ano do Senhor de 1906. No mesmo navio, também vieram para o Zoológico do Bronx um casal de mandris, três lêmures e uma chimpanzé. Pobres mandris e lêmures; não tinham carisma, empatia com os humanos ou apelo publicitário suficientes para receberem um nome. Mas a chimpanzé sim: Polly.
A Polly pertencem as lembranças mais antigas de Dohong. Amigos desde sempre, companheiros na orfandade e no cativeiro, as afinidades, os afetos e as carências se sobrepondo às barreiras de gênero e espécie. Era comum que Polly passasse longas horas na jaula de Dohong. mesmo quando estavam em jaulas separadas, não passavam muito tempo sem se comunicarem um com o outro, em um idioma próprio que só eles entendiam.
Polly estava ao seu lado no dia em que Dohong inventou a alavanca. Nas paredes da jaula havia algumas barras horizontais de madeira, de quatro centímetros de espessura, presas em cantoneiras de ferro fundido. Uma delas havia se quebrado, e Dohong brincava com um dos pedaços. Mexe daqui, mexe dali, acabou enfiando o pedaço de pau entre uma das barras e a parede. Foi só questão de tempo até que a enorme força muscular de Dohong, amplificada cantou a frase duas, três vezes. Cantou-a novamente, harmonizando-a com um acorde menor. Percebeu que a frase naturalmente pedia uma continuação, como as perguntas pedem respostas.  (...)

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