terça-feira, abril 03, 2018

(DIM) Cineclube Gandaia: «A Semente do Diabo» de Roman Polanski (1968)


No início de um ciclo dedicado a Roman Polanski forçoso é despachar o assunto da sua condição de foragido da (in)Justiça norte-americana, acusado de relações sexuais com uma menor, mesmo que nada aponte que tenham sido forçadas e se enquadrassem num padrão de normalidade social depois revisto e tido como criminoso.
Ele é uma das mais notórias vítimas da tendência de um setor da sociedade para, partindo de pressupostos corretos - a condenação da pedofilia - adotar atitudes irracionais de linchamento pessoal, que visam condenar a um inquisitorial índex tudo quanto provier do engenho e arte de quem tem o azar de lhe suscitar doentia atenção.
Entendamo-nos pois: num mundo em que as «Lolitas» descritas por Nabokov existem mesmo e podem estender as suas teias de sedução a incautos objetos do seu desejo, Polanski caiu nessa rede e dela nunca mais se livrou apesar de terem passado entretanto muitas décadas e a própria «vítima» o ter mediaticamente ilibado do suposto crime. E, no entanto, uma aliança espúria entre fanáticos fascistas e tontas feministas continuam a manter uma perseguição injusta, capaz, por exemplo, de comprometer a concretização de uma recente retrospetiva da Cinemateca francesa sobre a sua obra.
Abordando o que mais nos deveria interessas - essa referida obra - podemos considerar que a filmografia de Polanski é constituída por filmes de excelência (pessoalmente enquadro «Chinatown» ou «Por Favor não me Morda o Pescoço» no meu top 100 de entre todos os muitos filmes vistos no último meio século!), outros  bastante bons e outros que o não são tanto mas que, mesmo assim, excedem em qualidade quase tudo quanto se vai por aí exibindo à volta.
Existem dois tipos distintos de temas maioritários nessa obra: ora as aparências escondem um segredo, que põe em causa o futuro dos protagonistas, ora a sua tranquilidade vê-se constrangida por uma ameaça contra a qual possuem escassas defesas. Como exemplos do primeiro tipo de filmes temos «Repulsa» (1965), «O Inquilino» (1976) ou «O Deus da Carnificina» (2011); do segundo poderemos citar «O Beco» (1966), «A Noite da Vingança» (1984) e este «Rosemary’s Baby», que foi o primeiro por ele rodado nos Estados Unidos, quando aí se radicou em 1968.
De início temos um jovem casal a quem a vida parece sorrir, felizes por juntarem os trapinhos num novo apartamento. Mas, logo os fatores de inquietação começam a esboçar-se na diferença de traços de personalidade: Rosemary é angelical, mas cada vez mais denunciada na sua fragilidade íntima; Guy é conflituoso, sempre pronto a entender o mundo que o rodeia como argumento para uma boa refrega. Essa antítese vai-se polarizar no espaço reduzido do apartamento, que se torna insuportavelmente claustrofóbico à medida que a trama evolui. Aquele que era um espaço luminoso, prometido para a exacerbação da felicidade transforma-se numa prisão sem fuga possível.
Ao contrário do que se tornou quase num subgénero do cinema de terror - o apartamento como entidade maléfica, que apavora quem nele se vê enclausurado, Polanski cria a progressiva perturbação de Rosemary a partir do assédio dos que a irão rodear, a começar pelo inquietante casal de velhos, que lhe serve de vizinhos. Tal como Sartre teorizara entretanto, o inferno são mesmo os outros.
Tudo se precipita a partir da gravidez da protagonista, após uma noite estranha em que, num pesadelo, se vira possuída por horrível criatura, e na manhã seguinte Guy confirmara ter aproveitado a sua inconsciência para ter relações sexuais com ela.
É a partir desse anúncio de um novo ser na sua barriga, que Rosemary deixa de ser dona dos seus dias, sempre controlada pelos vizinhos ou pelo médico por estes indicado, e que a força a restringir ao mínimo os seus movimentos. Apática, anulando-se na tristeza, ela interroga-se se tudo quanto a assombra é real ou fruto da sua imaginação.
A partir daí reencontramos uma preocupação expressa por Polanski noutros filmes anteriores e posteriores: a pressão de uma sociedade conservadora para manter a mulher num papel submisso, dividida entre a aceitação dos ditames masculinos, ou ser entendida como louca. Em «Repulsa» Catherine Deneuve era a bela rapariga, sempre sujeita a manifestações do desejo masculino, e por isso condenando-se a violento afastamento do que a rodeava como forma de aliviar as dores de cicatrizes passadas, que nunca pareceriam fechar. Em « A Noite da Vingança», Sigourney Weaver era a dona-de-casa, que encontra no episódico visitante do seu retiro o torcionário sem rosto, que a torturara enquanto prisioneira política e a quem agora pretende punir, sem que saibamos se a sua suspeita é fabricada pela mente conturbada ou real.
Mas «A Semente do Diabo» convive com outros filmes, que nessa mesma década de sessenta, abordavam tema similar: em «Esplendor na Relva» (1961) de Elia Kazan, Natalie Wood pagava os custos de uma relação amorosa sujeita a ostensiva reprovação social vendo a sua lucidez questionada, ao contrário do parceiro, Warren Beatty, que era perdoado e integrado na sociedade. Em «Lilith e o seu destino» (1964) de Robert Rossen, o mesmo Warren Beatty passava incólume pela relação estabelecida com a jovem por ele conhecida na instituição psiquiátrica onde arranjara emprego durante o verão, assistindo impotentemente ao agravamento das condições em que ela aí permaneceria. O sueco Ingmar Bergman também assinara «Em Busca da Verdade» em 1961, em que víamos uma mulher a regressar a casa depois de um período de internamento, mas continuando a ver a realidade na confusão entre o que ela ditava ou o que mentalmente lhe sugeria.
Estamos, pois, num dos contextos narrativos, que suscitam maior eficiência nos filmes do género de terror em que este se enquadra: o que se vê é fruto da imaginação de Rosemary ou o que verdadeiramente lhe sucede? Como espectadores colocamo-nos decididamente do seu lado quando, quase no final, ela própria tenta esclarecer essa dúvida. Mas, fisicamente esgotada e mentalmente confusa, ela própria nos leva a suspeitar da benignidade do seu estado mental.
Quando chega o genérico final estamos confrontados entre aceitarmos tudo como uma diversão intelectualmente bem construída, ou um questionamento do comportamento maioritário da sociedade em relação a preocupações femininas ou ainda a confirmação dos nossos preconceitos misóginos sobre o tipo de perturbações que Freud começou a tratar como sintomas de histeria.

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