quarta-feira, abril 18, 2018

(DL) A África selvagem de Kapuściński


A leitura de «Ébano» de Ryszard Kapuściński está a corresponder à elevada expetativa, que dele havia antecipado. Se o consagrado repórter polaco há muito me surgira como o autor de prosa talentosa e de um sentido analítico de observação  como poucos, apenas lhe visitara textos esparsos, que me haviam confirmado esse juízo alheio. Agora, saboreando com os cuidados de um «gourmet», as páginas deste testemunho sobre as suas experiências em África nos inícios dos anos 60, quando as independências se sucediam umas às outras, vou encontrando muitos motivos para aferir as próprias reflexões sobre o que o grande continente me suscitou, sobretudo por ali ter passado por vicissitudes inesquecíveis, quer no melhor dos sentidos, quer no dos mais intimidantes.
Há, por exemplo, esse sentimento de insegurança por se ser branco num espaço onde se é olhado como símbolo de um colonialismo a que se vincularam todas as razões para se sentir a frustração de uma felicidade prometida, mas longe de ser cumprida. Ou a persistência de um apartheid indisfarçável, mesmo em países já libertos da potência colonizadora, e sem a sua tradução numa lógica constitucional como a então implantada pelo regime dos boers. Ou ainda essa curiosa idiossincrasia africana de tudo se partilhar com os «primos», tão só se alcancem as prebendas de um posto burocrático, preponderando um dever coletivista, que nada tem a ver com o individualismo europeu ou o hiperindividualismo norte-americano. Ou ainda a desilusão por novos regimes nada alterarem na divisão entre classes sociais, porque rapidamente os antigos funcionários coloniais foram substituídos pelos antigos guerrilheiros, que se limitaram a apossar dos antigos privilégios como os das mansões com piscinas, os carros oficiais ou a corte de criados para serem servidos.
Usando uma inabalável objetividade para compreender tudo quanto se lhe depara Kapuściński extasia-se, porém, quando o lado mais selvagem e intocado pelos homens se lhe depara. Como no trecho que se segue, extraído da página 49 da edição dos Livros do Brasil, em que relata a experiência de uma viagem entre Dar-es-Salam e Campala:
“Como tinha um todo-o-terreno resistente, podia circular por toda a parte. Existia ainda um outro pretexto: no início de outubro, o país vizinho do Tanganica devia obter a independência. A onda de independência inundava todo o continente: em apenas um ano - 1960 - dezassete países africanos tinham perdido o seu estatuto de colónia. E o processo continuava ainda que a um ritmo mais lento.
A viagem de Dar-es-Saiam até à capital do Uganda, Kampala, onde iam ter lugar os festejos da independência, demora três dias, se se andar de sol a sol à velocidade máxima. Metade do percurso é asfaltada, a outra metade é de estradas naturais revestidas a laterite, os chamados raladores africanos, por terem uma superfície estriada, sobre a qual só se consegue conduzir a grande velocidade, por cima das «nervuras», como no filme «Le salaire de la peur».
Comigo viajava um grego chamado Leo, meio corretor, meio correspondente de diversos jornais em Atenas. Levávamos quatro pneus sobresselentes, dois barris de gasolina, um barril de água e mantimentos. Partimos de madrugada e dirigimo-nos para norte, tendo à nossa direita o Oceano Indico, embora da estrada não o conseguíssemos ver e, à nossa esquerda, primeiro o maciço de Nguru e depois a estepe de Massai. De ambos os lados da estrada a cor verde era ininterrupta. Erva alta, arbustos cerrados, as enormes copas das árvores. E assim sempre até ao Quilimanjaro e às cidades de Moshi e Arusha no seu sopé. Em Arusha voltámos à direita em direção ao lago Vitória. Passados duzentos quilómetros começaram os problemas. Chegámos à região do Serengeti, onde existe a maior concentração de animais selvagens à face do planeta. Por todos os lados se veem manadas de zebras, antílopes, búfalos, girafas. Todos pastam, saltam, galopam. Mesmo junto da estrada, leões impassíveis; um pouco mais adiante, um grupo de elefantes, e, mais além, no horizonte, um leopardo em corrida. E de facto incrível. E como se presenciássemos a criação do Mundo, esse momento especial, em que já existe a terra e o céu, a água, as plantas e os animais selvagens, mas ainda não existem Adão e Eva. Neste lugar, o mundo surge no seu estado primitivo, um mundo sem homens e por isso também sem pecado, e isso é de facto um acontecimento extraordinário.”
Hoje podemos lamentar que essa África ainda existente há pouco mais de meio século quase tenha desaparecido e em seu lugar se tenham feito sentir os sintomas de uma ocupação humana caótica, completamente às avessas das conjeturadas por muitos dos mais idealistas combatentes do colonialismo.

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