Há uns trinta e cinco anos, quando começava o boom de videogravadores no mercado, um amigo sentiu-se nas sete quintas por poder doravante encher cassetes com imagens recolhidas das televisões e onde se vissem cenas macabras da vida real: toureiros trespassados pelos cornos dos touros, crimes horrendos, desastres da natureza com muitas vítimas humanas, etc.
Esse gosto por tudo quanto pudesse haver de representação do mais sinistro causou-nos alguma estupefação, mas deu para perceber a razão para que a Ponte se atafulhe de veículos dos dois lados, apesar de um eventual acidente só ocorrer num dos sentidos. A curiosidade lusa por tudo quanto seja mórbido já quase se tornou num estereotipo!
Por isso mesmo não foi particularmente estranha a reação de um espectador sentado ao nosso lado durante a projeção do filme de Robert Greene no Indie Lisboa e que, ao iniciar-se a passagem do genérico final levantou-se para sair e comentou em voz alta: «Que filme mais parvo!»
Decididamente ele deve ter ali comparecido na expectativa de ver as imagens verdadeiras do acontecimento, que lhe esteve na génese: na manhã de 15 de julho de 1974 a apresentadora de uma pequena estação televisiva de Sarasota, na Flórida, suicidou-se em direto durante a emissão do serviço noticioso de que estava incumbida.
Foi esse funesto incidente, que levou Sidney Lumet a rodar o oscarizado «Network», dois anos depois, no qual Peter Finch fazia o papel de um locutor revoltado pelo tipo de notícias que era obrigado a apresentar e que propunha aos seus espectadores para irem às janelas dos apartamentos gritarem o quanto estavam fartos.
O projeto de Robert Greene não é, porém, sobre o caso em si, muito embora ele esteja omnipresente, porque a ideia é acompanhar a atriz Kate Lyn Sheil no trabalho de preparação para representar o papel de Christine Chubbuck. Se a depressão e o estigma da rejeição fazem parte dos temas abordados não é por constituírem em si a matéria principal do filme, mas porque Kate precisa de aprofundar a sua personagem de forma a torna-la tão próxima quanto possível da realidade e credível ao espectador pela sua verosimilhança. Nesse sentido essa compreensão da psique de Christine é tão importante como imitar-lhe tanto quanto possível o visual com a utilização de uma peruca e de lentes de contacto.
E porque se trata de um work in progress, durante as três semanas da rodagem, a pequena equipa técnica acompanhou Kate nas suas conversas com quem conheceu Christine ou quem trabalha nos sítios por onde ela passou: a estação televisiva, a loja onde comprou a arma para se matar, a casa onde viveu com a mãe e o irmão, etc.
O que de mais aproximado da tal costela voyeurista que nos permite Greene foi quando mostrou um par de minutos com a verdadeira Christine a entrevistar convidados do seu programa um par de anos antes de se querer tornar no objeto da notícia.
Mas, a exemplo do filme de Lumet, um discurso de Kate quase no final, confronta o espectador com o lado sádico, que o leva a ver com deleite o sangue e as vísceras das vítimas de crimes, acidentes ou suicídios.
«Kate plays Christine» é pois um filme sobre a dificuldade de discernir a ficção da realidade, a dissociação de quem interpreta um papel e se confronta com as suas próprias assombrações, e sobre esse fascínio tétrico do público pelo que de mais terrível possa acontecer a alguém.
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