As leituras possibilitam-nos, amiúde, encontros inesperados com a memória, resgatando vivências há muito resguardadas num qualquer recanto cerebral.
Sucedeu-me isso mesmo esta manhã, quando me dedicava a momento de puro entretenimento, como o costumam significar para mim os romances policiais de que sou assumido habitué.
Na página 204 de «Os 36 Homens Justos» de Sam Bourne aparece o seguinte parágrafo sobre a catedral de St. Patrick, que conheci na famosa Quinta Avenida de Manhattan: “Observando-a agora, Will lembrou-se da sua primeira impressão da catedral, acabado de chegar a Nova Iorque. Parecera-lhe um tanto ou quanto ridícula. Apesar da sua paixão por edifícios antigos, aquela enorme estrutura abobadada, que se teria encaixado perfei tamente em Paris, Londres ou Roma, era absurda em plena Manhattan. Entalada entre arranha-céus de vidro e aço, a catedral, com as suas janelas de arcos em ogiva, torres com ameias e espirais que perfuravam o céu, não só destoava no espaço, como também no tempo. Parecia encarnar uma espécie de futilidade, uma tentativa de conter a torrente de modernidade. Aquela era a cidade mais rápida do mundo e a catedral erguia-se, implacá vel, no seu centro, tentando parar o relógio.”
Só não concordo com a descrição do incómodo manifestado pelo autor através do seu protagonista, porque a razão do meu teve outra fundamentação: não se tratou tanto da dessincronia entre a quietude daquele espaço interior com o frenético bulício a desfilar à sua porta. A minha razão foi outra: a falta de patine daquelas paredes, como se se tratasse de uma imitação do género da Disneylândia em vez de um efetivo espaço sacralizado pela mística de sucessivas gerações.
Apesar do meu ateísmo sempre apreciei com gosto as grandes catedrais europeias cuja arquitetura, nuns casos extremamente austera, noutros prodigiosamente majestosa na sua ostentação de riqueza, muito deveu ao engenho de gerações de grandes construtores.
Mas, igualmente, impressionante sempre me pareceu essa capacidade de sugerir emoções metafísicas durante séculos, confrontando os crentes com a sua ínfima importância, quando comparada com a dimensão dos mistérios que não compreendiam. Foi o tempo em que a religião impunha obediências à exploração dos mais fracos pelos mais fortes e em que valores, hoje mais do que descontinuados, tinham força de lei. Como ainda pretendem salvaguardar uns quantos alucinados, sempre apostados em contrariarem a efetiva concretização dos direitos a cada um decidir da sua vida como melhor entende, desde que não interfira com os outros, como se constata ainda na atual Polónia.
Porque viram desfilar milhões de sucessivos visitantes, essas paredes costumam estar rachadas, sujas e com outros indeléveis sinais dos muitos anos, que passaram. E por isso mesmo suscitam o respeito devido a uma fisicalidade que está muito mais para além do objetivo ou da utilização de que se viram incumbidas. Na sua permanência ganharam estatuto de verdadeiros documentos da História.
Foi isso que não encontrei na catedral de St. Patrick. Impressionante na dimensão das suas colunas e ogivas, mas demasiado branca para ser credível. Afinal o reflexo de um país recente, cuja História restringe-se a pouco mais do que ao massacre dos índios, à guerra civil por causa da escravatura e à afirmação de um capitalismo selvagem cada vez mais posto em causa...
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