O hipermercado não é cenário apetecível para a ficção contemporânea, apesar de constituir um dos mais frequentados pelas populações citadinas. Quando, por exemplo, o cinema o utiliza é quase sempre em distopias onde representa o derradeiro espaço a saquear antes de se mergulhar num mundo caótico, quantas vezes entregue ao domínio dos zombies.
Em 2013, não sei se por encomenda do editor, se por impulso próprio, Annie Ernaux decidiu escreveu sobre o que via no dia-a-dia da grande superfície onde costuma fazer as suas compras. Encontrou, assim, um espaço hostil, onde os seguranças logo apareceram, quando tentou fazer uma fotografia, e onde os espaços de exposição de livros e jornais são mudados de forma a tornarem-se desconfortáveis aos que ali se costumavam demorar a folheá-los.
A mão-de-obra é explorada ao máximo (ela lembra que quem trabalha nas caixas dos supermercados integra o setor mais pobre da população) senão mesmo eliminada por “evoluções tecnológicas”, que obrigam os clientes a apresentar os produtos adquiridos a leitores de scanner e a fazerem o respetivo pagamento automático. Tende-se assim a excluir um dos poucos momentos onde o comprador, entregue a si mesmo, podia trocar algumas palavras, quer com quem o antecedia ou sucedia na fila, quer com a empregada dali doravante excluída.
Mas a abordagem de Annie Ernaux escalpeliza muitas outras realidades ali presentes: a definição muito restrita do que são brinquedos para meninos e para meninas, quando se trata de passar pelas prateleiras dedicadas às prendas natalícias. A quase inexistência de literatura digna desse nome na secção dedicada à cultura, onde avultam os best-sellers, os livros de culinária, de bricolage ou de autoajuda. O receio de olhar para o teto, pela curiosidade de saber como ele era feito, porque estão lá penduradas as câmaras e fica-se com o receio de levar os seguranças da central a pensarem nalgum motivo equívoco para identificar a sua localização.
Quando as notícias revelam as mortes de centenas de bengalis, que trabalhavam em condições de grande insalubridade em prédios-fábricas, subitamente desmoronados, não existe qualquer surpresa quando se fica a saber que aí eram produzidos artigos têxteis para as grandes insígnias dos hipermercados europeus.
Numa tradução muito livre, cito Annie Ernaux quando em jeito de balanço final reconhece que, “naqueles meses , mediu a força do controle que a grande distribuição exerce nos espaços, quer no seu real, quer no seu imaginário - provocando desejos nos momentos que pretende - , a sua violência revelada ora na profusão colorida dos iogurtes, ora nas filas de prateleiras cinzentas dos artigos de ‘discount’. O seu papel na acomodação dos indivíduos à fraqueza dos rendimentos, na manutenção da resignação social. Quer sejam depositados em pequenas quantidades ou em catadupas de artigos nos tapetes das caixas, as compras são quase sempre dos que são mais baratos. Senti muitas vezes uma sensação de impotência e de injustiça ao sair do supermercado. E, no entanto, nunca deixei de me sentir atraída por esse espaço e pela vida coletiva, subtil e específica, que aí decorre. Pode acontecer que esta vida desapareça muito em breve com a proliferação dos sistemas comerciais individualistas, como os das encomendas pela internet ou no drive, que parecem ganhar a preferência das classes médias e superiores.
Se assim for as crianças de hoje chegarão a adultas talvez recordando com melancolia as compras de todos os sábados no Hiper, como os que hoje contam mais de cinquenta anos e guardam as reminiscências das mercearias perfumadas do passado, quando iam ao «leite» com um púcaro de metal.”
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