Na única vez que aterrei em Hong Kong o 11 de setembro ainda não tinha acontecido pelo que vivi com curiosidade, e não com apreensão, essa sensação estranha de estar a pousar no antigo aeroporto entre grandes arranha-céus contornados pela habilidade do piloto. E ao sair para as ruas a referência imediata foi «Blade Runner», o filme de Ridley Scott, baseado num romance de Philip K. Dick: se o olhar tendia a subir na direção das alturas onde pareciam nunca mais acabar os edifícios mais modernos, cá em baixo era a confusão e a sujidade a imperarem. Na altura lembro-me de ter pensado, que as cidades do futuro tenderiam a ser assim, excessivas e contraditórias.
Afinal devo ter-me enganado e, numa semana em que desapareceu Zaha Hadid, cujos edifícios ganharam linhas de uma elegância aerodinâmica de autêntica ficção científica, hoje continuados por tantos outros excelentes reconstrutores da paisagem urbana, reconheço que, embora já não venha a viver o suficiente para tal, imagino as cidades da segunda metade deste século com características arquitetónicas muito diferentes das conhecidas atualmente.
Não deixa de ser curioso o sucesso, que Vhils está a ter na antiga colónia britânica no Mar da China: é que se os arranha-céus tendem a menorizar a presença humana em cidades cada vez mais dominadas pelo seu gigantismo, as obras do artista do Seixal tendem a inverter essa relação de poder aparentemente incontornável. É por isso, que assumem-se como reflexão sobre a interligação entre a identidade de cada individuo e a cidade onde habita. Porque a desumanização de que fala o romance mais recente de Valter Hugo Mãe tem de encontrar resposta num modo de vida ocidental donde os valores da sociabilidade possam ser resgatados.
É certo que, em «O Sentido da Vida», o filme de Miguel Gonçalves Mendes, ainda em fase de rodagem, mostra-se que o pior da civilização humana - as guerras, as xenofobias, o crime, etc. - perdem qualquer relevância vistas de cima, da estação orbital donde um dos protagonistas do filme, um astronauta, a contemplou. Mas, embora não saiba verdadeiramente se é esse o objetivo mais relevante de Vhils ao produzir as suas obras, importa que consigamos elevar a condição humana ao que ela tem de mais sublime (a criatividade, a solidariedade), resgatando-a da tendência para se tornar robotizada por uma sociedade, que gostaria de transformá-la num exército dócil de robots.
E, curiosamente, a arquitetura recente de que Hadid foi uma das mais estimulantes criadoras, até acaba por sinalizar essa diferenciação, porque ao habitar uma cidade feita de edifícios dissemelhantes uns dos outros, é a própria identidade dos que neles habitam ou trabalham, a refletir essa especificidade criativa. Ou não será?
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