segunda-feira, outubro 15, 2018

(AV) À margem de uma retrospetiva de Miró


Desde o início do mês que Miró está presente em Paris através da retrospetiva organizada no Grand Palais e que poderá ali ser vista até 4 de fevereiro. O que por ela se confirma é o génio de um artista eclético, de fértil imaginação e inatacável lucidez.
Joan Punyet Miró, o neto, que é igualmente, o guardião do seu legado, descreve-o como um homem inquieto e preocupado com o que o rodeava e com o futuro de quem a si se seguiria. Terá constituído para si uma surpreendente revelação o dia em que, aos dez anos, pode aceder ao ateliê do avô sentindo-se inebriado com os odores da terebentina, dos guaches e dos óleos aplicados, ou por aplicar, nos muitos quadros e desenhos ali expostos, banhados pela magia da luz mediterrânica.
No final da Guerra Civil, quando trocou o exílio francês pelo ambiente familiar em Maiorca, colocando a família a recato dos bombardeamentos nazis, ele foi quase tido como um traidor pelos amigos, mormente Picasso, que haviam optado por manter-se na França ocupada. Mas ele apostava na sua condição de brigadista cultural, confiado na possibilidade de se ver poupado ao destino trágico de Garcia Lorca, cujo assassinato muito penalizara internacionalmente o regime franquista. E este viveria a humilhação de o ver ausentar-se da sua primeira exposição em Barcelona, em 1968, quando constatou a iminente presença do ministro Fraga Iribarne.
Nesses anos em que se radicara na ilha das Baleares, Miró nunca cessara de investir em novos territórios artísticos numa coexistência entre liberdade e criatividade. Nos quadros, cerâmicas, tapeçarias e esculturas haviam-se multiplicado símbolos, muitos deles decorrentes da arte primitiva, que, associados ao imaginário infantil, não deixavam de ver associados os seus pensamentos mais sombrios.
Era um génio do desconhecido e do mundo onírico, inspirado pela poesia e pela música. Confirmando a razão porque convivia com poetas, mais do que com outros artistas plásticos, estivera associado ao surrealismo desde os seus primórdios, embora viesse depois a sobrepor-lhe a preocupação com a depuração e com a revolução permanente, que o conduziria à ambição crepuscular de «assassinar a pintura». Banksy nada inventou quando, ainda recentemente, destruiu parte de uma obra sua, levada a leilão, com uma trituradora de papel inserida na moldura. Aos 80 anos, quando as suas obras atingiam cifras enormíssimas no mercado da arte, Miró dedicou-se a queimar muitas das obras do seu ateliê aterrorizando os assistentes, transidos de espanto por tal sortilégio.
Anos antes formulara o desejo de ver transformados os seus quadros em poemas, musicados por um pintor. Sob o aparente primitivismo buscava potenciar a liberdade graças à complexidade da sua técnica. Rebelde - ele que vivera em Paris os acontecimentos de maio de 1968 - intentou transmitir violência, subversão, vanguardismo, ao que criava. Tinha a permanente inquietação de arriscar, conciliando as duas facetas da sua personalidade: de dia era disciplinado no trabalho, à noite lia poesia desejoso, que ela se incrustasse nos sonhos, estimulando-lhe os monstros do inconsciente, que pudesse libertar como catarse ao concretizar a criatividade na manhã seguinte. Ir muito além da obra na tela, no barro ou na pedra, era a sua obsessão.
É menos conhecido o seu lado depressivo, que muito devia aos traumas das guerras por que passara - quer a das fações inimigas no seu país, quer a que inflamou toda a Europa entre 1939 e 1945. Na década de sessenta a viagem ao Japão muito o encantaria, sobretudo por lhe permitir o contacto direto com a arte dos seus calígrafos. Quem melhor exercitava a expressão do máximo despojamento na expressão artística?
Quando alcançara a condição octogenária a obra de Goya viria a impor-se-lhe com uma dimensão, que até então se revelara menos significativa. Ele, que tantos elogios recebera pelas obras de rico cromatismo, voltava ao preto-e-branco e, sobretudo, à linha fina a percorrer a imensidão das telas brancas. Pretendia assim representar o voo dos pássaros, metáfora definitiva sobre a brevidade da vida e a presença iminente da morte.

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