sábado, outubro 20, 2018

(EdH) “Selvagens” em Jardins Zoológicos (1): uma miúda da Terra do Fogo


“O bárbaro é , em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie» (Claude Lévi-Strauss)
Foram-nos buscar ao fim do mundo durante mais de cem anos, desde meados do século XIX até à Segunda Guerra Mundial. reduziram-nos à condição de curiosidades, totalizando-se trinta e cinco mil os indivíduos exibidos, observados por quase 1,5 mil milhões de visitantes. Seres humanos exibidos para gáudio de outros seres humanos em zoos, circos, teatros, salas de anatomia, em exposições coloniais e universais. Foram homens e mulheres equiparados a animais, incluindo as crianças, apenas para promover a hierarquização das raças e, sobretudo, dar fundamento à colonização do mundo.
Qual o motivo para  suscitarem tanto sucesso? Porque foram descritos como selvagens provenientes de longínquas e extraordinárias terras, consideradas exóticas, e cujos habitantes poderiam ser vistos em carne e osso.
Exigiram-lhes que aparentassem ser canibais, quando nunca o tinham sido. Banalizava-se assim um racismo primário através da teatralização de imagens preconceituosas, que pouco ou nada coincidiam com a realidade. Conhecemo-los pelas fotografias, mas não nos chegaram os nomes das suas identidades pervertidas.
A intenção de hoje os recordarmos não implica culpabilizar os descendentes de quem assumiu esses crimes contra a Humanidade.  Trata-se, sobretudo, de compreender o que se passou e o porquê, ao mesmo tempo entendendo os efeitos duradouros dessa lamentável história.
Em 1881 a miúda de olhar aterrorizado da fotografia ao lado - apenas com dois anos e meio -, foi capturada na Patagónia com a respetiva mãe. Pertencia a um povo nativo da Terra do Fogo, que se vira espoliado das terras pelos colonos europeus cuja avidez traduzira-se em assassínios em massa. A extinção desse povo foi rápida e na maior das indiferenças.
O empresário alemão Carl Hagenbeck, especializado na exibição de «espécimes primitivas«, ou seja de seres anormais, disformes ou com costumes peculiares (o canibalismo, por exemplo), estava convicto dos lucros potenciais garantidos pelo fascínio dos putativos espectadores.  Foi ele quem encomendou a um rico comerciante de Punta Arenas a captura de um grupo desses já raros ameríndios, logo enviados para a Europa num barco afretado para o efeito.
Nessa viagem por mar a miúda deve ter visto transformados em realidade os piores pesadelos infantis. Eram horríveis as condições dessa navegação de mais de um mês em que a tripulação olhava para ela e seus acompanhantes como valendo menos do que nada. Desembarcados no Havre em agosto de 1881 foram recebidos por Albert Saint-Hilaire, o diretor do Jardim da Aclimatação, que embora os saiba em escala para a Alemanha, compreende o potencial de os ter na sua instituição.
Na realidade não era o primeiro grupo de populações primitivas a serem trazidas para diversão das populações europeias: desde 1877 que lapões, esquimós e núbios tinham vindo exibir-se no Jardim de Saint-Hilaire, suscitando sempre um enorme sucesso. E há que ir mais atrás, ao século XVI, quando tinham acontecido as primeiras exibições de povos longínquos nas cortes europeias. Porém, só no início do século XIX é que as exibições etnográficas tinham aparecido nas feiras populares, nas tabernas e teatros, alcançando um público mais vasto. Sarah Bartman, desafortunada pigmeia , também conhecida como a «Vénus Hotentote», fora trazida da África Austral e exposta como uma aberração. Tal como ela os homens, mulheres e crianças, trazidos da Terra do Fogo, eram vistos como sub-humanos.
Era o arranque de uma experiência humilhante: passavam o dia num recinto fechado sob o olhar curioso de uma multidão atraída pela que interpretavam como extravagante. Reunidos em torno de uma fogueira nada lhes restava fazer senão deixarem-se observar. Para lhes suscitarem reações os visitantes atiravam-lhes moedas ou amendoins, como fariam a um macaco. A miúda não é vista como a criança que é. Consideram-na exemplo de um nível de evolução muito básico.
Os organizadores apresentam-nos como canibais e a imprensa publica artigos delirantes sobre os seus «costumes». É nessa travestida «realidade» que são vistos pelos visitantes.
Saint-Hilaire exulta: a exemplo do pai, que criara o Jardim, ou do avô, que estudara a Vénus Hotentote», considera-se um cientista brilhante. Ademais, em poucas semanas, quatrocentos mil visitantes enchem-lhe os cofres.
As condições de exibição são terríveis. Os ameríndios não estão adaptados ao clima de Paris, e muito menos ao barulho ensurdecedor da multidão. É certo que os vacinam por temerem que a mercadoria se perca, mas a miúda adoece com uma broncopneumonia. O organismo muito frágil não consegue combater a doença  e, em poucos dias, ela morre nos braços da mãe no recinto em que as fecharam.
É a primeira vez que morre uma criança exibida num zoo humano. Estava-se a 30 de setembro de  1881 e o espetáculo nem por isso deixaria de prosseguir no dia seguinte.

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