quinta-feira, outubro 25, 2018

(DIM) Ainda sobre «Sonata de Outono» de Ingmar Bergman (1978)


Esta noite conclui-se no Auditório Gandaia o ciclo de homenagem a Ingmar Bergman a pretexto do centenário do seu nascimento. É exibido o filme «Sonata de Outono», rodado em 1978, e que constituíu a única colaboração entre o realizador e a sua conhecida homónima, Ingrid, com quem partilhava o apelido sem nenhum grau de parentesco. Como era habitual nas obras que assinava, aqui se aborda a vida e a morte, a religião e as relações entre as pessoas.
A religião surge logo representada pelo personagem Viktor, que começa o filme a falar diretamente para nós, espectadores, convidando-nos a entrar na história, que se explicitará na hora e  meia seguinte. A exemplo do pai de Ingmar Bergman, ele é pastor de uma pequena aldeia, generoso como pressupõe a vocação a que se dedicara, mas ao mesmo tempo passivo como quase sempre o são os homens nos filmes do realizador. Embora assuma um papel determinante no cuidar da cunhada, afetada por doença degenerativa, ele apenas assiste ou ouve as conversas que a mulher e a sogra irão ter.
A morte está sempre presente como uma ameaça, que afeta ou suscita ansiedade nas personagens. Charlotte, a pianista, está de luto pelo segundo marido. Eva, a filha, continua a manter o quarto do filho tal qual estava, quando morrera afogado aos quatro anos. E Helena sofre de uma doença degenerativa, que faz prever o seu iminente fim.
A vida é um bem difícil de usufruir. Assim o considera Eva num livro, que escrevera, e onde confessara a dificuldade em se conhecer bem no intimo e de lidar com essa desconhecida. A dificuldade em amar e ser amada é um pressuposto, que contribui para a insegurança inerente à forma como age.
Justifica-se aqui referenciar a importância dos espelhos nos filmes de Bergman: eles refletem uma aparência da realidade que com ela não coincide. A verdade de quem se é, oculta-se por trás da similitude ilusória. Essa constatação irá evidenciar-se no progressivo desmascaramento de Charlotte, que nos começa por parecer uma mulher empática, mas vai, pouco a pouco, denunciando a arrogância e frieza com que interage com os demais. A sua essência egoísta, quiçá mesmo monstruosa, irá revelar-se na cena em que Eva interpreta um prelúdio de Chopin e ela expulsa-a do piano para, em quatro minutos de humilhantes explicações, desconsiderar a filha que, uma vez mais, só procurava ser por ela amada.
Esse episódio é apenas aperitivo para a violenta catarse da noite seguinte, quando Charlotte acorda assustada com um pesadelo indiciador da sua má consciência e passa as horas seguintes num diálogo cada vez mais violento com a filha. São trinta e quatro minutos intensos, sempre em grandes planos ou em flash backs, com estes últimos a remeterem para a luminosidade e enquadramentos dos quadros de Vermeer. Subitamente verbaliza-se o que se costuma calar nas relações familiares: Eva acusa a mãe de ser a maior responsável pela infelicidade das filhas. Como se constatou desde o início do filme, ouvindo tudo quanto sucede entre mãe e filha, Viktor não intervém, embora volte a interpelar-nos no final, fazendo-nos, uma vez mais, cúmplices do que pensara.
Desmentindo Freud, que julgava curar os pacientes se  lhes impusesse a catarse, o filme regressa ao ponto de partida: voltando a escapar ao convívio com as filhas, Charlotte fala no comboio com o agente (Gunnar Bjornstrand num breve cameo!) e está novamente retocada na máscara de mulher forte e fria. O mundo desfila lá fora, mas só consegue ver o reflexo de si mesma no vidro da janela. Eva também reassume o papel de subserviência, escrevendo-lhe a desculpar-se pela forma como a recebera.
Conclui-se, assim, um filme onde perpassam as três questões primordiais na obra de Bergman: quem sou? Onde estou? Para onde vou?

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