sexta-feira, outubro 05, 2018

(DIM) «O Sétimo Selo» de Ingmar Bergman


Eis um filme que nunca poderá ser ignorado, quando se escolhem os melhores de quantos foram realizados nos anos 50. O protagonista é o cavaleiro Antonius Block, que regressa a casa, vindo das Cruzadas, e tem por companhia o escudeiro e um casal de saltimbancos enquanto depara com a devastação da peste espalhada por onde passa. Para furtar-se a tal epidemia aceita jogar uma partida de xadrez com a Morte, decidindo-se do resultado a sua salvação ou condenação.
Esse perfil da Morte e do cavaleiro, tendo a separá-los o tabuleiro do jogo, e por fundo o mar bravio, é tão icónico dessa década cinematográfica, quanto a imagem de Anita Ekberg a desafiar Marcello Mastroianni na Fonte de Trevi ou a de Janet Leigh apunhalada quando tomava um duche.
Poucos filmes terão merecido tantos comentários, críticas e citações. Quer na história, quer na forma como é abordada - com enquadramentos de uma perfeição, que daria o desejo de parar em muitos fotogramas para melhor os apreciar um a um! - «O Sétimo Selo» é um filme tipicamente bergmaniano cujo título provém de uma referência do Apocalipse segundo São João em que o cordeiro abre os sete selos do Livro do Juízo Final.
Decorre na sequência de uma cruzada mortífera na altura em que a peste negra está no auge e parece dar razão aos delírios milenaristas então em voga. Com uma costela de filósofo um cavaleiro dialoga com a Morte, procurando enganá-la, correspondendo cada jogada a uma progressiva sucessão de atitudes perante o Nada: a má consciência durante a confissão, o hedonismo durante um piquenique, a resignação fatigada quando o xeque-mate se perspetiva em seu desfavor. No entretanto outras cenas esclarecem os usos e costumes da época: uma procissão de fanáticos a ostentarem arrependimento, a imolação de uma «bruxa», a agonia de um doente com a peste.
Os filmes de Bergman passados na Idade Média contribuíram para impor um cânone macabro para definir os ambientes nela passados, fazendo esquecer que também nela se conheceram períodos áureos, mormente os relacionados com o nascimento do espírito cavalheiresco e do amor cortês. Ainda assim Bergman reserva a salvação para os personagens secundários habitados pela descontração de quem aprecia os que de bom reserva a vida. Se o cineasta identifica-se com o cavaleiro torturado, a simpatia vai para o casal formado por Joseph e Mia, os saltimbancos que se mostram indiferentes à sua busca de um sentido para o que o move, não regateando generosidade e humor a quem deles mais precisa.  O ódio e a barbárie, quase lhes passam ao lado. Ela ostenta uma sensualidade algo infantil, e o marido efabula com as suas fantasias, enquanto cuidam do bebé louro com a vida inteira por plenamente usufruir. Ao contrário do azedume do escudeiro e da vontade de desistir de uma criada quando confrontada com a sinistra personagem, o jovem casal e o filho fazem prevalecer a alegria de existirem.
Todos acabam por ser chamados na altura devida e nem o logro do ator, que finge-se apunhalado, e logo é ceifado por quem o vinha buscar, acaba por resultar.
O Cavaleiro não beneficia de nenhum privilégio, que o redima da ameaça. No fundo ela constitui o corolário de uma existência desperdiçada. Por isso também ele participará na dança da morte, que Joseph verá à distância e constitui uma belíssima consagração das suas visões.
Deve-se olhar de frente para a Morte? Para os fantasmas ou outros tipos de espíritos sobrenaturais, sim. Mas como conferir uma presença ao que significa sobretudo uma ausência? Nos olhos da feiticeira na fogueira o Cavaleiro só descortinara o medo e o desespero por nada mais restar que ver.  O resto é literatura. Mas Bergman não se deixou cair em tal armadilha. Não projeta a autoanálise ou compaixão num espantalho, mas transfere-o para um alter ego a contas com os mesmos medos, frustrações e interrogações, que sempre foram os seus. Por isso alcança o gesto mais ajustado e puro da modernidade cinematográfica.

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