quinta-feira, outubro 18, 2018

(DIM) «Persona» de Ingmar Bergman (1966)


Esta noite irei rever um filme (Cineclube Gandaia, às 21 horas), que já visitei não sei quantas vezes e sempre me pareceu diferente em cada uma delas. Porque possibilita múltiplas leituras e o final em aberto deixa pressupor desenlaces tão variados quanto o queiram imaginar os seus espetadores. Não admira que a escritora norte-americana Susan Sontag afiançasse ser este o melhor filme da História do Cinema e que ele aparecesse classificado, amiúde, entre os primeiros naquelas listas, em tempos tão comuns, sobre os títulos mais representativos da Sétima Arte.
Em 1966, quando se estreou internacionalmente, eram frequentes as tertúlias de intelectuais e foram milhentas as que o virarem do avesso em conversas inesgotáveis e, quase por certo, as interpretações delas decorrentes não lhe esgotaram todas as possibilidades de o explicarem. 
Bergman rodou-o no vigésimo ano do seu percurso como realizador, iniciado em 1946 com «Kris». Na altura o medo da morte acentuou-se-lhe, porque contraiu uma pneumonia muito grave, que temeu abreviar-lhe a existência. Imaginada na cama do hospital, «Persona» levá-lo-ia a considerar que essa criação tinha sido fulcral para se poder salvar. Terá sido remédio tão forte, que ele ainda viveria mais de quarenta anos, porque só morrendo em 2007 com 89 anos.
Tema muito discutido na época - o das máscaras usadas por cada um de nós para sermos bem sucedido em sociedade, mas com o risco de tanto as assumirmos, que perdemos o verdadeiro conhecimento de quem somos -, é ele o glosado por Bergman para criar este argumento, no qual investiu escassas nove semanas. O psicanalista Carl Jung definira «persona» como essa faceta envergada por cada indivíduo para cumprir o papel social e que poderia levá-lo a desconhecer quem era na realidade.
Para a criação da personagem de Elisabeth Vogler, o realizador teve, igualmente, em atenção as máscaras utilizadas pelos atores na Roma Antiga para que a sua voz se amplificasse e melhor fosse entendida pelos espetadores dos anfiteatros do Império. Ora, pretendendo a atriz livrar-se dessa máscara, a lógica inatacável, mandava que perdesse a voz. Isso sucedera inesperadamente, quando representava «Electra» em palco, não encontrando a ciência as razões neurológicas, ou outras de teor físico, que explicassem esse mutismo. O filme irá, pois, passar-se em grande parte na ilha de Farö, naquela que é designada como a residência de férias da administradora do hospital. E implicará a companhia de Alma, uma enfermeira escolhida para a apoiar numa recuperação, que se adivinha difícil, porque a reação catatónica só esporadicamente se vê interrompida. É o que sucede, quando Elisabeth vê a sequência televisiva de um monge budista a imolar-se pelo fogo.
Nessa altura já teremos sido compelidos a um estado semi-hipnótico pelas imagens iniciais, com planos muito curtos de uma crucificação, de um pénis ereto, de uma aranha, de um filme mudo, de um prisioneiro numa cela, de uma ovelha a ser morta ou de um menino a acordar num hospital. Esse é apenas o primeiro sinal de uma intenção experimentalista de Bergman, quer do ponto de vista visual, quer sonoro. Neste caso em particular, há que dar muita atenção à atmosfera sonora criada ao longo de todo o filme para lhe acentuar o lado fantasmagórico, igualmente construído por conta de uma iluminação pensada para, através de sombras, deixar mergulhados os rostos no seu lado mais sombrio.
A escolha do cenário - a ilha rodeada de água por todos os lados - tem, igualmente, um propósito bem definido: ela metaforiza o território mental donde a razão tende a querer escapar-se, onde a loucura pode contaminar. É nesse espaço que as duas mulheres estabelecem fronteiras porosas entre si, ou não vivam ambas numa indefinição entre o que é realidade e o que possa ser ficção. É que Alma vai monologar com a interlocutora muda, cujo olhar a fascina. Por isso expõe-se em confidências, que tenderão a justificar o posterior conflito. Nelas constatamos, porém, um dos momentos antológicos do erotismo no cinema, através do relato pormenorizado de como a ela e uma amiga tinham participado numa orgia com dois adolescentes numa praia e que tinha resultado numa gravidez, que a levara a ter de abortar. Bergman poderia facilitar a vida ao espectador ilustrando essa confidência num flash-back, mas ela apenas é cingida ao terreno das palavras balbuciadas por ela, que se julga numa relação quase fusional com a paciente. Razão para haver quem avente a implícita relação sáfica entre ambas.
Até aos 46 ou 48 minutos, o filme segue uma narrativa linear, que doravante fica selvagem, com cortes bruscos e num clima mais pesado. Elisabeth tenderá a vampirizar Alma, que entra em crise ao constatar a traição a que se vira sujeita, porquanto as suas confidências tinham sido transmitidas por carta à direção do seu hospital. Razão para a agressão física, que leva Elisabeth a sair, enfim, do seu silêncio, porque gritar constitui a forma de reagir ao medo de ser morta.
Alma acaba por perceber o que motivara a atriz a essa recusa das palavras: horrorizada com os dramas do mundo, vira nessa alternativa a única forma de voltar a ser ela mesma. O grito é a reação ao horror de ser absorvida pelo nada, de o corpo se evaporar e desaparecer.
«Persona» é, então, um filme sobre a atração pelo outro, pelo desejo de nele se fundir como forma de escaparmos de nós mesmos. Mas também sobre a impossibilidade dessa diluição de duas personalidades numa só. Fala de sofrimento, de traição, de ciúme, de desejo e de amor superlativo. E também de dominação e submissão dentro do casal. Por isso mesmo o olhar é determinante no decurso da projeção, desde o da ovelha morta no início, até aos das duas personagens, que se veem ou se evitam, e acabam por fixar-se em nós, espectadores, chamados a ser personagens de corpo inteiro no que na tela se passa.
É um filme com duas interpretações - as de Bibi Andersson e, sobretudo, de Liv Ullmann (mesmo só dizendo três palavras) - para as quais não existem elogios que cheguem, tanto mais que a mesma qualidade está patenteada na fotografia do mestre Sven Nykvist.

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