domingo, outubro 07, 2018

(MP) O que Miguel Sousa Tavares terá a ver com a «arte degenerada» dos nazis?


«…Não há um só homem que não seja um descobridor. Começa por descobrir o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tal letras do alfabeto; passa pelos rostos, os mapas, os animais e os astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da sua própria ignorância.»
Este pequeno trecho é da autoria de Jorge Luís Borges e está no «Atlas» recentemente publicado pela Quetzal, em que ficamos a conhecer as suas impressões de viagens na companhia de Maria Kodama.
Se Miguel Sousa Tavares tivesse lido essas palavras e, sobretudo, as confrontasse com os seus preconceitos, eximir-se-ia de ter escrito o texto abjeto sobre as fotografias de Robert Mapplethorpe, atualmente em Serralves, e que considerou produto de uma doentia mente homossexual. É que Tavares replicou, de forma muito aproximada, a atitude dos nazis quanto à  «arte degenerada».
No «Ípsilon» desta semana também António Guerreiro aborda o sucedido em Serralves, mas numa perspetiva bem mais abrangente: confirma o que Graça Carmona e Costa reconhecia numa entrevista à RTP quanto à precária qualidade de vida por que passam muitos artistas contemporâneos. Nesse texto Guerreiro apresentava o exemplo do búlgaro Luchezar Boyadjiev, num projeto em que «contabilizou o que as instituições da Europa ocidental gastaram com ele no espaço de alguns anos, em viagens, exposições, residências de artista, conferências, etc. Nas suas contas, o montante é de cerca de 100 mil dólares. Mas, em contraste, ele não dispõe de nenhuma reserva de dinheiro nem de bens, vive próximo da indigência no tempo em que não está sob a tutela das instituições que o convidam.»
Explica-se assim que Joana Vasconcelos quase tivesse forçado Serralves a importar a exposição do Guggenheim de Bilbau em que apresenta muitas das suas peças mais recentes, embora, no mesmo jornal, Isabel Salema constate não ser este um dos melhores momentos da artista, responsável por trabalhos bem mais interessantes noutras ocasiões. Será de equacionar até que ponto ela anda pressionada pela necessidade de garantir, não só os seus rendimentos, mas também os dos vários colaboradores, que mantém fixos no seu atelier.  Nesse sentido tal pressão talvez a tenha levado a esquecer o que escrevia Valter Hugo Mãe há algum tempo: «O lugar do artista é o desajuste. A arte é uma utopia de solução. Mas só resulta apenas na manutenção do desajuste». O tal desajuste que justificaria em Miguel Sousa Tavares a desconchavada crítica. Sobretudo por se incomodar com o que ela pressupõe: «Criar é combate, tem que ver com insatisfação e luta, (...), contra a quietude comezinha do quotidiano.» citando, uma vez mais, o autor de «A Desumanização».

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