domingo, outubro 28, 2018

(EdH) Selvagens em Jardins Zoológicos (3): Aborígenes e Ka’linas


Barnum ganhou uma enorme fortuna com a apresentação de aborígenes australianos no seu circo, obrigando-os a uma esgotante digressão por cento e trinta cidades norte-americanas e canadianas. Pode-se imaginar o terror, que terão sentido esses homens e mulheres, vindos dos quase despovoados territórios do Queensland, quando expostos perante multidões de trinta mil espectadores?
Em 1884, depois de ter percorrido milhares de quilómetros no território americano, Tambo adoeceu e morreu. Cunningham, o irlandês, que o fizera vir da terra natal, ordena que lhe mumifiquem o corpo, vendendo-o a um museu de Cleveland.
As mortes vão-se suceder, umas atrás das outras, mas o espetáculo continua. Cunningham adivinha que, mesmo amputada de alguns dos seus membros, a comitiva fará sensação na Europa pelo que a direcionou para Londres, a capital dos zoos humanos e do maior império então existente.
Nesse ano de 1884, Cunningham fez negócio com Guillermo Farini, o maior empresário de espetáculos «etnográficos», que já fizera vir bosquímanos do deserto da Namíbia para serem exibidos no Aquário Real.
Os Aborígenes estavam identificados com o que deles pretendiam, quando os apresentaram no Crystal Palace, edifício emblemático construído em 1851 para a Exposição Universal. O sucesso público volta a ser assinalável.  São então enviados para outros palcos europeus - Berlim, São Petersburgo e Paris. Seria na capital francesa, que os dois derradeiros sobreviventes do grupo foram fotografados antes de sucumbirem à tuberculose.
Nessa época de grande interesse pelos povos exóticos, os respetivos empresários não eram os únicos a compreenderem o interesse dessas exibições. Os Estados coloniais viram neles uma oportunidade imperdível: ao demonstrarem a sua «inferioridade civilizacional» convenciam os europeus dos benefícios da sua ação nesses territórios distantes.
Estava-se, então, num salto em frente na afirmação das ambições coloniais, o que obrigou a que as mais importantes potências europeias se associassem aos Estados Unidos e ao Japão para a partilha das últimas terras ainda indefinidas quanto à sua pertença. Nomeadamente em África, onde os portugueses tinham conquistado posições históricas, que ingleses, franceses, alemães e italianos questionavam quanto à sua efetiva posse. Pouco a pouco o planeta vai sendo partilhado entre os que julgam ser os únicos detentores de valores e costumes civilizados. Doravante os zoos humanos ainda mais se incrementariam para legitimarem esse domínio colonial. Havia a perceção de que, exibindo essas populações «primitivas», os espetadores vê-las-iam como um espalho, que os convenceriam da sua superioridade civilizacional.
A história de Moliko é a de uma sobrevivente. Pertencente ao povo Ka’lina da Guiana, pôde voltar para junto dos seus após meses de humilhações.
Quando em 1882, ela e os trinta e dois companheiros, abandonaram as margens do rio Maroni, o som dos tambores acompanhara-os. Se a despedida fora de festa, o que os esperava, quando o barco deixou para trás as costas das terras onde até então tinham vivido começou o seu calvário. François Laveau, o emissário do governo francês, mentira-lhes com promessas de dinheiro, belas descobertas e a promessa de serem bem
tratados.
Levados para o Jardim da Aclimatação de Paris, que ganhara grande experiência na exploração desse tipo de «divertimento», viram-se encerrados em jaulas, incumbidos de manufaturarem utensílios em barro. fingirem que andavam de piroga e a comportarem-se como «selvagens». A humilhação foi dupla: não só compreenderam que não eram aceites tal qual eram, como se viam obrigados a cumprirem um papel, que lhes era estranho. Foram, igualmente, cobaias de estudos «científicos» de carácter racial e modelos forçados de fotógrafos, que captaram inúmeras imagens destinadas a disseminar essa ideia de inferioridade das «raças exóticas» relativamente aos sofisticados europeus.
O inverno, com as inevitáveis doenças, dizima quase todo o grupo. Dos mais de trinta escalados para a viagem a França só dez regressaram. Entre eles essa Moliko, que relatou o sofrimento aos filhos e aos netos, que, desde então, fizeram os possíveis por o não deixar esquecer.
O recurso aos Ka’lina significou um passo mais ambicioso de uma potência colonial na produção da sua propaganda.
O Ministério das Colónias passou a incumbir-se dessa estratégia, chamando a si a aprovação de todos espetáculos privados, que secundassem tal propósito.

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