quinta-feira, outubro 04, 2018

(DL) «18 Palavras Difíceis» de Luis Rainha (I)


Nos meus primeiros anos de mar conheci um praticante de piloto com peculiar insegurança em si mesmo, que tentava compensar com a leitura insistente do dicionário, donde resgatava as palavras mais difíceis para, depois, as utilizar às refeições na messe dos oficiais. Não interessava se a propósito, ou não, ele embasbacava os presentes com vocábulos da maioria desconhecidos.
Ele veio-me à memória a propósito de «18 palavras difíceis», livro de Luis Rainha publicado pela Tinta-da-china em 2012. O conceito é simples: o autor pretextou termos assaz raros na nossa coloquialidade para criar um conto a partir de cada um.
A «Angiogénese» serve-lhe para nos revelar como uma mulher aprende a viver com o cancro irreversível, que dela se apossou. A mesma doença aparece, igualmente, em «Latrofobia», quer com a descrição dos tecidos recolhidos em biópsias e conservados em frascos para serem analisados, quer na peruca utilizada para disfarçar os efeitos dos tratamentos químicos, quer, enfim, no marido, confesso assombrado pelo “fantasma de alguém que ainda vive”.
Em «Jacência» há um álbum de família, que um personagem folheia sem saber de quem se trata, já que todos terão vivido muito antes do seu nascimento. Apenas os adivinha a montante da sua posição na árvore genealógica. E decide inventar-lhes nomes e enredos para que não fiquem em tão irremediável olvido.
Em «Pirofonia» cuida-se de uma curiosa singularidade relacionada com incêndios um pouco por todo o mundo: em cada fogo de grandes dimensões parece sublinhar-se uma palavra desde que observado de cima. São termos aparentemente sem sentido, como «arrependimento» em Itália ou «formigas» em Portugal, que levam uns lunáticos a conjeturarem na sua origem extraterrestre. Ou outros, tão ensandecidos quanto esses, a perguntarem-se se Deus não estaria a tentar comunicar com os homens, mesmo que por absurdas referências difíceis de serem interligadas.
Em «Bibliotroopismo» um escritor relê o seu romance e só vê defeitos no conteúdo e na capa, ciente de muito distarem de quanto pretendera criar. Um autor de uma tese escolhe um parque de campismo para ler o seu trabalho antes de o entregar e, também ele, se insatisfaz com o conteúdo, até tendo dúvidas se contém frases inteiras que não haviam ali sido interpostas por si. E há a confissão de tal texto ser início de um romance, que não ganhara elã para seguir por diante.
Curiosamente os cinco contos já lidos denotam algo de semelhante com o tal praticante de piloto, que recuperei das profundas da memória. Há o recurso a palavras incomuns, que não se esgotam nas dos títulos. As narrativas são imbrincadas, difíceis de se clarificarem. E as inseguranças dos personagens só se equivalem em importância com o medo evidente da doença, que melhor fundamenta a angústia de ver abreviada a existência.

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