terça-feira, outubro 23, 2018

(DIM) «Sonata de Outono» de Ingmar Bergman (1978)


No ciclo, que o Cineclube Gandaia tem promovido durante este mês de outubro, temos podido constatar que os filmes de Ingmar Bergman são magníficos, mas incómodos. Deparamo-nos com diálogos inteligentes, atores dirigidos com rigor, personagens construídos com sensibilidade e uma montagem virtuosa a valorizar a fotografia irrepreensível de Sven Nykvist.
Bergman começou a construir este filme quando, numa noite de insónia, imaginou o reencontro de uma mãe e de uma filha em torno de um piano. Deveria começar como uma sesta agradável após o almoço, estendendo os efeitos benfazejos até à noite, altura para desencadear insólito pesadelo, antes da manhã devolver a oportunidade de um  aparente recomeço.
Abordando quase sempre conflitos entre personagens, os aqui expressos envolvem uma mulher frágil e disciplinada face a uma mãe tão livre quanto explosiva, a quem não via há sete anos. Ingrid Bergman encontrou aqui uma personagem à medida da sua capacidade para a ilustrar com enorme talento.
Um fim-de-semana, que se previa tranquilo, transforma-se num ajuste de contas  com balanços do passado partilhado, muitas lágrimas e não menos olhares assassinos.
Bergman nega neste filme aqueles que, a exemplo de Godard, lhe classificaram a obra como a da arte do instante. De facto, em títulos anteriores, o presente parecia sobrepor-se ao passado por muito que o revisitasse na forma de recordações, já que era assumido sem constrangimentos morais, indiferente à desordem do mundo em redor e resignado quanto à inexistência de Deus.
«Sonata de Outono» desvia-se convictamente dessa constância: o passado torna-se aqui bem mais forte do que o presente com as aparentes alegrias de hoje a mascararem o sofrimento do desamor passado. Curiosamente, quer o filme anterior, «O Ovo da Serpente», sobre a ascensão do nazismo, quer o seguinte, «Fanny e Alexandre», dão a esses tempos idos a importância, que parecia subalternizada nas preocupações narrativas do realizador.  Entre 1977 e 1982, data dos dois filmes com este de permeio, Bergman parece esquecer-se do presente para interrogar tudo quanto do passado subsiste por resolver. No fundo é a definição do presente do passado, ou seja da memória.
Esteticamente é filme de raros movimentos de câmara que, quando acontecem, mais servem de raccord, e de enquadramentos soberbos, sobretudo nos flash backs, que remetem para as pinturas de Degas.
A cor, a que o realizador só se rendera em 1969, com a «Paixão» - desistindo assim de um expressionismo favorecido pelo preto-e-branco - ganha dimensão metafórica: o verde feio é o da filha inibida e austera, enquanto a mãe subjugadora veste, sobretudo, de vermelho.
Em noventa e nove minutos assistimos a um duelo do qual as contentoras saem praticamente iguais ao que eram, quando o encetaram.

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