segunda-feira, outubro 22, 2018

(EdH) Selvagens em Jardins Zoológicos (2): da extinção dos fuegianos à apresentação de aborígenes no Circo Barnum


Após a exibição de Paris os ameríndios da Terra do Fogo são levados de comboio para a Alemanha em carruagens habitualmente utilizadas para o transporte do gado. Para as autoridades é o que eles são: mercadorias sem direitos  pelos quais o empresário paga taxas alfandegárias nas fronteiras. Este, Carl Hagenbeck, recebe-os em Hamburgo e exibe-os com grande sucesso no seu circo: em seis semanas consegue dois milhões de visitantes, ou seja o dobro dos que se tinham verificado em Paris.
Hagenbeck começara a carreira em 1874 com o negócio de animais exóticos, mas tão-só constatou o interesse público pelos povos de terras longínquas, viu nessa diversificação a forma de exponenciar o lucro dos seus negócios. Em 1906 a fortuna já crescera-lhe tão significativamente, que empreendeu a construção de um gigantesco jardim zoológico em Hamburgo.
Sempre que trazia um novo grupo de «selvagens» para serem exibidos, contava com a presença de cientistas ansiosos por os examinarem. Ora os índios da Terra do Fogo provinham de uma região cuja população era quase totalmente desconhecida dos europeus. Razão para serem submetidos a medições antropométricas, que confirmassem a teoria da sua subalternidade no quadro geral da evolução humana, justificativa afinal dos pressupostos ideológicos do colonialismo. Aqueles «espécimes» eram apresentados como sub-humanos.
Bischoff, que liderava a Sociedade Berlinense de Antropologia, queixava-se do excessivo cansaço dos «indígenas» para se manterem de pé, enquanto os mostrava nas suas aulas. E exasperou-se por ver recusado pelo grupo uma inspeção minuciosa do sexo das meninas e das mulheres. Só quando duas delas morrerem é que viu satisfeito o desejo de lhes estudar o corpo, dissecando-lhes os cadáveres.
A tournée prossegue: depois da Alemanha os fuegianos são enviados para a Suíça apesar dos efeitos neles suscitados pelo desespero, exaustão, frio e vírus com que jamais haviam contactado. Um a um vão adoecendo e as mortes sucedem-se, dando oportunidade aos cientistas para contarem com mais cadáveres nas mesas de trabalho.
Carl Hagenbeck foi forçado a dar por finda a digressão em 1882 com os sobreviventes em estado calamitoso, a suscitarem reações negativas dos espectadores quanto a tão notória degenerescência. Perdendo valor comercial são devolvidos à procedência: tinham sido onze à partida, apenas dois regressariam a casa. Levados para uma missão anglicana, que se incumbia do apoio a outros ameríndios sobreviventes do genocídio perpetrado pelos colonizadores, traziam não só reminiscências terríveis do que haviam passado na Europa, mas sobretudo doenças pulmonares com que contaminaram os restantes, contribuindo para a sua mais acelerada extinção. Em 1970 morria o último sobrevivente das outrora numerosas tribos do cone sul da América Latina.
Por essa mesma época, nos Estados Unidos, o rei das exibições humanas era Phileas Taylor Barnum. Desde 1841, que enriquecera graças à sua especialização na exibição de aberrações. No mesmo palco mostrava os fenómenos mais incomuns: anões, sereias, casais siameses, a mulher barbuda, o gigante - todos compondo uma galeria do bizarro, do fantástico. Revolucionara o mundo do circo com o que designava «O Maior Espetáculo na Terra», para um público de cinco mil pessoas por espetáculo. A ideia de acrescentar «selvagens» ao seu naipe de espécimes levou-o a contactar com agências e consulados de todo o planeta, exigindo-lhes autenticidade em quem lhe enviariam. Um irlandês, Robert Cunningham, satisfar-lhe-ia os intentos. Em 1883, quando soube do pretendido por Barnum, estava em Queensland no nordeste da Austrália, e logo concluiu quão potencial seria o negócio de exportação de aborígenes, a população local desprovida dos mais básicos direitos humanos pelos colonizadores britânicos.
Numa «aldeia negra», como se chamavam os espaços circunscritos onde eram obrigados a viver, Cunningham conheceu um jovem aborígene a que deu um nome artístico: Tambo. Os que o acompanhariam foram, igualmente, «rebatizados»: Toby, Jenny e o filho, Toby Jr., Billy, Susie, Jimmy e Bob.
Segundo a pseudociência da época os Aborígenes estavam no nível mais baixo da escala da evolução, tornando-se particularmente atrativos para os espetáculos «etnográficos». Dizia-se que constituíam espécies subdesenvolvidas, inadaptáveis aos tempos modernos, e como tal passíveis de extinção.
Quando Cunningham os fez embarcar em Townsville, viu-se confrontado com a revolta desses passageiros, decididos a voltarem à sua aldeia. Para os impedir o irlandês retirou-lhes as roupas à força. O que não impediu dois deles de escaparem na escala em Sidney, com um juiz a mandar libertá-los depois de capturados pela polícia. Os restantes prosseguiram viagem para serem integrados no Circo Barnum em Nova Iorque, interpretando os papéis impostos pelo empresário: Billy tornava-se o terrível caçador, com cicatrizes impressionantes e um osso a perfurar-lhe as narinas. Susie é apresentada como uma princesa do Queensland. Tambo é o guerreiro capaz de impressionar com a sua agressiva dança ritual. E pretende-se apimentar o espetáculo com o suposto canibalismo do grupo que suscitaria efetivo perigo para o público. Que se divertiria, igualmente, com a habilidade dos «atores» no uso do boomerang.

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