Jean Hatzfeld já me andava arredado das leituras há mais de uma década, embora «Tempo de Catanas» e «A Estratégia dos Antílopes» tenham-me permanecido inesquecíveis por me elucidarem o quão brutal foi o genocídio dos tutsis ruandeses pelos seus vizinhos hútus. Sem necessitar das imagens macabras colhidas por quem ali acorrera avidamente em busca do Prémio do Ano da melhor Fotografia, o antigo repórter do «Libération» conseguia demonstrar que as palavras comportam basta capacidade para nos transmitirem um imperdoável horror. Estávamos ainda com memória fresca da implosão jugoslava, que nos revelava uma terrível conclusão: não importa em que coordenadas geográficas vivamos há sempre a possibilidade de, num dia, sentirmo-nos acomodados em vivência pacífica dentro de uma comunidade sem aparentes tensões, e no seguinte vermo-nos atacados com armas de fogo, machetes ou catanas por quem éramos cumprimentados todas as manhãs. Decididamente o que Thomas Hobbes escrevera em 1651 - o homem é o lobo do homem - mostrava-se intemporal e sempre persistente como ameaça à nossa ilusão de segurança.
Nesta nova temporada literária em França, Hatzfeld faz-se de nós recordado com um novo romance em que se vira para outra realidade não menos interessante, porque reveladora de como há quem se deixe manipular por poderes superiores sem disso se dar conta. Em «Deux mètres dix» ele imagina que, nos campeonatos europeus de atletismo de Helsínquia, decorridos em 1982, a vitória feminina no salto em altura não coubera efetivamente à espanhola Ruth Beitia, que registou, então, 1,97m, mas a duas rivais, uma russa, Tatiana, e outra norte-americana, que teriam partilhado a medalha de ouro ao pulverizarem o record de 2,10m - na realidade o atual ainda é de 2,09m e pertence à búlgara Stefka Kostadinova desde 1987.
Por essa mesma altura dois outros rivais - o quirguize Chabdan e o anticomunista ianque Randy—medem forças no campeonato de halterofilismo e dão, igualmente, ensejo ao empolamento da suposta superioridade de uma ou outra superpotência.
Temos, pois, quatro personagens fictícios, que, trinta anos depois do desaparecimento da União Soviética, reencontram-se nas montanhas do Quirguistão e recordam os respetivos percursos, dando-se conta de como terão servido de instrumentos políticos dos respetivos governos num contexto de Guerra Fria. O anfitrião terá sido o que mais rapidamente se apercebera da precariedade da sua condição de herói, pois servira-se dela para criticar o Soviete Supremo, e fora bater com os musculados costados num goulag. Mas todos põem em causa o quanto haviam sacrificado para darem-se inteiramente ao desempenho desportivo, acicatados pelo patriotismo, que deveriam personificar. Cada um deles dá versão distinta de uma histeria política em que a breve sensação de se equipararem a deuses nos estádios depressa se esvaiu e fê-los comprovar os limites decorrentes da sua condição humana.
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