domingo, outubro 30, 2016

(DIM) «Para sempre», um filme de Heddy Honigmann

Se nos preparamos para ver um documentário quase todo passado no cemitério do Père Lachaise em Paris, podemos apostar na inevitabilidade de nos ser mostrada a campa de Jim Morrison, o vocalista dos Doors, que garantiu, anos a fio, um fluxo ininterrupto de fãs a visitá-lo.
Isso poderia ser verdade se a realização não fosse assinada por Heddy Honigmann, que nos tem encantado com filmes inolvidáveis pela sua originalidade e humanidade. Porque num local habitado por mortos, são os vivos quem aqui contam. E são eles que vão desfilando perante o nosso rendido olhar, dando-nos a conhecer as suas histórias pessoais.
Há Yoshino, a japonesa fascinada pela música de Chopin desde os oito anos e que a interpreta ao piano como forma de comunicar à sua maneira com o pai, falecido anos atrás, de esgotamento como sucedeu a tantos japoneses da sua idade e condição.
Uma velha senhora, lava as campas de Proust, de Apollinaire e de Modigliani, conhecendo-lhes bem as obras e biografias.
Conhecemos três espanholas chegadas a França no fim da Guerra Civil para escaparem às exações de Franco e ainda indignadas por o terem deixado mandar no seu país durante cinquenta anos.
Um apaixonado pelo local, de que se tornou guia assíduo, chama a atenção para os túmulos mais esquecidos e degradados, onde jazem poetisas e cantoras desaparecidas ainda jovens e de quem mais ninguém se parece lembrar.
Um ilustrador, Stéphane, é também um visitante frequente da obra de Proust, que começou por detestar quando tinha vinte anos e redescoberto com inesperado fascínio quinze anos depois. Na história das madalenas recorda a teoria sobre o acesso à eternidade e como o que mais importa na vida é a arte.
Há também a caribenha, que evoca a paixão fulgurante por um jovem vinte anos mais novo, subitamente falecido por causa de uma picadela de abelha, quando ainda só contavam com dois meses de casados.
Uma armeniana exuberante orgulha-se da cruz ali afixada, símbolo identitário da sua cultura, e fala com admiração do progenitor, um renomado artista na sua arte de criação de calçado.
David, o embalsamador de uma funerária, igualmente encontrado à beira da sepultura de Modigliani, reconhece-lhe a influência na sua arte, quando procura dar aos cadáveres a aparência de quando ainda neles pulsava a vida.
Um iraniano, que ganha a vida como motorista de táxi em Paris, recolhe-se amiúde junto ao sepulcro de Sadegh Hedayat, grande poeta da sua cultura cujos versos canta na orquestra clássica a que pertence.
Mas não é só ele quem ali canta: um grupo de admiradores do autor da canção «Le Temps des Cerises» vem entoá-la junto ao túmulo do seu criador.
Pode-se, pois, concluir que há ali bem mais do que histórias de solidão como a princípio tememos. É que mesmo nos casos de quem ali vem para falar com os seus mortos ou ler-lhes volumoso livro, continua a existir uma ininterrupta comunicação entre quem se foi e quem cá ficou.
Heddy Honigmann vai acompanhando todas essas histórias com os sons de Chopin, e o recurso à estatuária ilustrativa dos sentimentos e emoções ali revelados.
Há muito mais vida neste filme sobre a homenagem aos mortos do que na maioria das fitas por aí exibidas para entretenimento dos consumidores de coca-cola e pipocas.


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