Ainda mal acabara de viver o enterro da minha mãe, quando iniciei a leitura do romance do Afonso Cruz com o relato do mesmo ritual para o pai do narrador, que aí constata como o cheiro das flores substitui o da podridão do cadáver.
Talvez esteja explicada, logo à partida, a razão para o título, porque há uma contínua procura de algo que se perdeu, porventura compensado por emoções sensitivas de substituição.
Existe a mulher, Clarisse, a quem já há muito esfriaram os afetos (“Beijamo-nos como quem faz a cama”), a filha Beatriz, e, sobretudo, o vizinho deprimido, o velho senhor Ulme.
O espanto do narrador justifica-se quando o ouve dizer nunca ter visto uma mulher nua e, depois, um carro quase os atropela, quando seguiam ao lado um do outro na rua. Não tardará a compreender que ele sofrera um aneurisma e esquecera-se de boa parte de quanto fora. Por isso não será fácil perceber as razões para serem seguidos na rua nos dias seguintes. Um bom motivo para ir indagar quem ele tinha sido na aldeia donde proviera, antes de se instalar na capital.
Uma noite, aproveitando a ausência da conjugue, o narrador traz a colega do jornal, Samadhi, para casa e é surpreendido em flagrante adultério pela filha que lhe propõe guardar o segredo consigo.
Mas a relação com Clarisse vai-se agravando: “Tenho a certeza de que a vida morre com a rotina e não com a morte, e que o hábito nos petrifica. Um dia olhamo-nos ao espelho e estamos transformados em estátuas.” (pág. 72)
Além de ir notando sinais do crescente alcoolismo da esposa, irrita-se com o facto de ela ir deixando um chapéu em cima da cama do quarto de hóspedes, circunstância que sabia de sobra ter o condão de o irritar.
“Hoje o espalho devolve-me aquilo a que chamamos realidade, que em mim ganha a forma disto que se acumula na cintura e de uma vida conjugal a desmoronar-se, a cair de uma ribanceira depois de uma curva apertada.”(pág. 113)
Quando Clarisse sai finalmente de casa, levando consigo Beatriz, é que ficamos a saber que, temporalmente, o romance é redigido oito anos depois de tal ter sucedido.
É para compensar o vazio por elas deixado nos seus dias, que o vemos a dedicar-se mais aplicadamente a resolver o mistério sobre quem fora o senhor Ulme, que anda sempre a dizer “Entremos mais dentro da espessura, entremos mais dentro da espessura”, num prenúncio da doença neurovegetativa que o irá progressivamente debilitar.
Mas as novidades sobre a sua vida conjugal espantam-no: só por Ulme é que o narrador fica a saber de uma possível explicação para o alcoolismo da ex-mulher, decerto relacionada com o despedimento a que fora sujeita no hospital em que trabalhava. E por Samadhi também se espanta por ambas terem partilhado o execrável Mendes como amante, não propriamente pela sua inteligência limitada, mas pelos argumentos sexuais.
É, assim, forçado a reconhecer uma evidência: “o que ela [Clarisse] não perdoa em mim é o facto de ter deixado de a amar e de olhar para a sua nudez como quem olha para o chão da calçada ou para os azulejos brancos de uma casa de banho pública. (pág. 188)
Dos testemunhos que vai recolhendo sobre Ulme, o narrador vai formando uma ideia pouco lisonjeira sobre os comportamentos passados. Por exemplo, quando desflorara a futura cantadeira de fado Margarida Flores num descampado, não só informara toda a aldeia do que iria suceder, como cobrara bilhetes por tal «espetáculo». Ou que, mais tarde em Lisboa, ao sabor da relação amorosa entre ambos, ele ora a protegia do exterior, ora era capaz de a denunciar à Pide como subversiva, o que lhe valera duas estadias na prisão fascista.
Neste romance com estórias paralelas , que se vão cruzando, coexistem abordagens múltiplas sobre Portugal do antes e do depois da Revolução, entre as diferenças de estatuto social e a descoberta dos limites de uma subjetividade nem sempre capaz da argúcia de compreender o que se passa à sua volta.
Como tem acontecido nas suas obras anteriores, Afonso Cruz não tem pressa em contar as histórias, que lhe interessam, desenvolvendo-as a conta gotas para melhor nos surpreender quando ganham súbitas reviravoltas para que não nos preparáramos enquanto leitores.
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