Sei que sou intransigente nos juízos, mas nunca me passará pela cabeça ler Céline, autor do tão celebrado »Viagem ao Fim da Noite», porque o sei abjeto colaboracionista dos ocupantes nazis e autor de textos odiosos contra os judeus, cujo morticínio implicitamente aprovou. Como, depois de um deslumbramento inicial com «Esplendor na Relva», deixei a adolescência já a maldizer Elia Kazan, cuja colaboração com a comissão do senador McCarthy nunca poderá ser objeto de absolvição.
Com Ellie Ney passa-se algo de semelhante. Apesar de, no início do século XX, ter desmentido o preconceito segundo o qual as obras de Beethoven eram demasiado complexas e enérgicas para poderem ser interpretadas por uma mulher, o seu comprometimento com o nazismo foi voluntário, entusiasmado e jamais objeto de qualquer distanciamento posterior.
Bem pode ter sido uma das mais talentosas pianistas de então a ousar a execução das principais peças para piano do compositor, que a aposta em tornar-se na embaixatriz cultural do III Reich lançou-lhe um anátema, que não a afetou tanto em vida como deveria ter acontecido.
De facto, se no final da 2ª Guerra Mundial os norte-americanos proibiram-na de atuar em salas de concerto, ela optou pelo órgão de uma igreja da Baviera até os governos da Alemanha Ocidental a recuperarem e celebrarem, apesar da sua conhecida ligação a movimentos de extrema-direita. Em 1968, quando morreu com 85 anos, até teve direito a funeral de Estado como se o seu comprometimento com os crimes do passado já tivessem sido esquecidos.
Ellie Ney foi, pois, o tipo de mulher capaz de se comover com as peças compostas por Beethoven - organizando-lhe até um festival anual em Bona apoiado por Hitler para equivaler ao de Wagner em Beyreuth - e ser cúmplice, sem remorsos, de todo o morticínio suscitado pelo chanceler que ela tanto adorava, tanto mais que rivalizava com Leni Riefensthl ou com Winifred Wagner no apoio ao antissemitismo.
O documentário de Axel Fuhrmann recorre a fotografias, filmes de arquivos e testemunhos de quem a conheceu ou estudou, para mostrar como ela adotou Beethoven como seu ídolo artístico e Hitler como o líder político em quem confiou a sua carreira.
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