Não sei quando se estreará entre nós o mais recente filme de Ken Loach, «I, Daniel Blake», ontem chegado aos ecrãs franceses e por isso merecendo do canal franco-alemão ARTE uma sessão temática dedicada ao realizador. Esperemos ter a oportunidade de, muito em breve, o vermos igualmente nos nossos cinemas.
Para o octogenário Loach este é um filme, que não deveria ter rodado, já que anunciara anteriormente a intenção de abandonar a atividade de cineasta. Mas a sua indignação com a «crueldade consciente» das políticas de David Cameron a respeito dos desempregados - cada vez mais abandonados à sua má sorte e pressionados a arranjarem um emprego onde ele é cada vez mais inexistente -, justificou a revogação da prévia intenção.
Tratando-se de um melodrama sem pudores de se mostrar maniqueísta, «I, Daniel Blake» é a resposta de Loach a um neoliberalismo capaz de simplificar os conceitos pelos quais tudo se analisa para melhor justificar os seus inaceitáveis fundamentos. Eficiente em ludibriar a opinião pública com o seu discurso mistificador, ele merece de Loach uma contrarresposta, igualmente, simples e eficaz, por suscitar emoções de indignação em quem a assume e pode sentir-se estimulado a sair da sua injustificada letargia.
De um lado temos desvalidos bondosos e solidários em contraponto a serviços de “apoio” a empregados já vinculados às “regras do mercado” e por isso apostados em hostiliza-los em vez de ajudá-los a encontrar soluções para os seus impasses.
Quando tivemos Mota Soares como ponta-de-lança do governo de Passos Coelho a idealizar a privatização da Segurança Social, era um cenário deste tipo o que se pretendia implementar.
Logo no genérico do filme temos disso demonstração, quando o protagonista, Daniel Blake se sujeita a um interrogatório patético por parte de uma inspetora desses serviços de apoio a desempregados: carpinteiro, que sempre descontara toda a vida para a Segurança Social e com todos os impostos em dia, pretendia apenas seguir o conselho médico que, face ao ataque cardíaco por ele sofrido num estaleiro de construção, o mandara pedir a reforma por doença. Agora, armando-se em médica, que o não é, essa inspetora obriga-o a levantar o braço esquerdo e a interroga-lo sobre eventual prisão de ventre, antes de dar-lhe o veredito: recusa da pensão de reforma e obrigatoriedade de provar regularmente a busca ativa de emprego.
A nós, que olhamos para tal cena, tudo parece reduzir-se a um sistema sádico, apostado em criar na vítima um pico de stress tal que, pela morte prematura, poupe o dinheiro por ele reclamado como um direito.
É num desses dias de comparência em tais serviços, que Daniel conhece Katie, uma mãe solteira com dois filhos, tão desesperada em encontrar forma de sobreviver que já até se predispõe a prostituir-se.
Temos, assim, um lumpemproletariado a quem só se atribui o direito da vergonha por ter caído tão abaixo na escala social, a serem contidos por vigilantes mal pagos, mas na primeira linha da expressão da agressividade contra os que se revoltam com inteira justiça.
Loach pretende demonstrar a perfídia de um sistema, que cria embates físicos entre os mais desfavorecidos , mesmo que os de um lado não tenham consciência, ou não queiram ter, de como são meros peões de uma disputa onde todos são comandados quem lucra obscenamente com a sua exploração.
Desde a inesperada consagração com a Palma de Ouro em Cannes, o filme tem tido bastante sucesso público, mas importa saber até que ponto ele consegue, de facto, ser útil ao despertar dos abúlicos, de forma a fazê-los atuantes no desacorrentar da sua opressão e humilhação.
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