No ano passado o sucesso de «Marguerite» fez com que produtores norte-americanos também se interessassem pela personalidade de Florence Foster Jenkins em cuja vida Giannoli baseara o seu argumento. E surgiu, assim, o filme com Meryl Streep e Hugh Grant, que andou aí pelos cinemas durante este verão.
Embora não o tivesse visto, pessoas em quem confio confirmaram-me o que adivinhava: enquanto o filme francês era profundo e dramático, o de produção hollywoodiana reduzia-se a uma comediazinha sem outro objetivo, que não fosse o de levar algumas plateias menos exigentes a sorrir.
Como quase sempre acontece a cópia saiu bem pior do que o original. E este último é de facto um belíssimo filme ao colocar-nos perante a questão: o que somos capazes de fazer para que os outros reparem em nós?
Esse é o drama de Marguerite Dumont, que tem a vantagem de ser riquíssima e poder dar-se a todas as excentricidades, muito embora tal desafogo não chegue para conseguir a atenção do marido. Por isso organiza festas privadas onde se comporta como uma diva para os que, por conveniência, se dizem seus amigos. E, no entanto, ela não tem a noção de quão desafinada é a sua voz, sem qualquer comparação com as das grandes sopranos cujos papéis operáticos procura imitar.
Giannoli também acrescenta à história a sua especificação num espaço e num tempo onde tanto estava a acontecer no que diz respeito à expressão vanguardista das artes: a Paris do início dos anos 20, quando os arautos do movimento Dada causavam furor e polémica. Não admira que um deles, Kyril, se maravilhe com a performance de Marguerite, que personificava todo o programa provocador de tal escola artística, negando qualquer semelhança com os gostos académicos e com a propensão para o bonitinho.
É um amigo de Kyril, já conceituado crítico musical num jornal, quem faz uma crítica tão positiva ao seu talento, que ela convence-se da urgência em se apresentar num palco a sério, com um público bastante mais lato do que o dos tais amigos, que sempre a elogiavam.
É esse crítico quem lhe arranja um professor para lhe aprimorar as competências, recorrendo para tal a um tenor decadente e dissoluto. Mas, por muito que ele se esforce por conseguir um resultado minimamente aceitável, Marguerite é, de facto, um caso perdido.
Prepara-se então o espetáculo e vários indícios vão sendo dados para que corresponda a um autêntico percurso para o Calvário não faltando a Pietá na última cena.
Quando se chega a esse desenlace trágico já há muito que o autoconvencimento de Marguerite deixou de nos suscitar risos de troça. É inevitável sentirmos compaixão por uma mulher infeliz a quem nem sequer o mordomo negro olha com outro objetivo que não seja enriquecer à sua custa. E, no entanto, passáramos todo o filme a ajuizá-lo como um dos únicos personagens com alguma decência no meio de tal tragédia.
«Marquerite» é, pois, um belíssimo filme, que conta com interpretações irrepreensíveis, mas que em Catherine Frot atinge a dimensão da excelência. E fica um retrato impiedoso de uma época em que cada um parece só poder contar consigo mesmo, porque até os deuses parecem virar-se contra todos. E é essa abordagem que lhe dá maior atualidade, pois que melhor réplica poderemos encontrar destes tempos onde ainda vigora o individualismo egoísta de uma sociedade culturalmente abastardada pelos valores do neoliberalismo? Até recuperarmos os valores fraternos, justos e igualitários herdados da Revolução Francesa ainda muito teremos de lutar.
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