Sou um materialista ateu impenitente. Por isso as questões da alma dizem-me muito pouco, embora sinta uma enorme curiosidade por saber como alcançámos as capacidades de abstração - até ver únicas nos seres vivos! -, que nos possibilitam compreender leis matemáticas complexas, criar belíssimas composições musicais ou quadros extasiantes. Somos, igualmente, os únicos, de entre os seres vivos a compreender que somos mortais, muito embora os conhecidos rituais dos elefantes junto às carcaças dos seus defuntos familiares possam pôr em causa essa especificidade.
Uma coisa temos por certa: essas capacidades criativas e abstratas podem ser seriamente postas em causa pelo envelhecimento. Razão para crer que essa materialidade do corpo está diretamente relacionada com as competências dessa «alma», que alguns acreditam tratar-se do vínculo com um sentido divino da vida.
Mas é a carne a propiciar-nos o prazer que, nalgumas circunstâncias, está na origem da vida, e é ela a sofrer as dores, quando coincide com o nascimento. É a carne, na matéria de que é feita, a suscitar a contradição entre o Eros e o Thanatos, que tanto tem sugestionado artistas e filósofos de todos os tempos. Por isso tanto encontramos os luminosos e eróticos nus de Ticiano, como a sugestão da degenerescência da carne em Lucien Freud. Tanto encontramos a sexualidade exuberante nas estátuas de mármore de Miguel Ângelo ou de Bernini como a abjeção dos mortos vivos dos filmes e séries televisivas contemporâneas.
Poussin, que era admirado pela capacidade em representar a pele dos corpos gesticulantes, pouco se interessava pelo que ela escondia. E, de facto, quando não nos faz sentir dores ou outros incómodos, tratamos o corpo como se nos fosse exterior, uma espécie de «ele», que se dissocia do «eu» feito dos nossos pensamentos, sensações e emoções.
O estado da nossa carne vai do prazer mais intenso à dor insuportável. Quando morremos ela desintegra-se. Como criaturas materiais, ora somos belos, ora repugnantes com a pele a tapar processos fisiológicos contínuos de que só os médicos têm a perceção. Na realidade somos sempre potenciais pacientes, sujeitos à vulnerabilidade da nossa biologia.
A tradição cristã sempre tratou de dividir a carne e o espírito, valorizando este em relação àquele. No entanto, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que defenderam uma ordem cósmica, superior às paixões exacerbadas e aos apetites perturbadores, mais não fizeram que teorizar conceitos já defendidos por Platão e Aristóteles.
Data da Antiguidade essa localização da «alma racional» no cérebro, da «alma sensível» no coração e os apetites da nutrição e da reprodução no fígado. Durante séculos eram esses os três órgãos mais importantes do ser humano, fundamentais para a manutenção da vida consciente.
No próximo texto, sugestionado pelo longo trabalho de Noga Arikha na mais recente edição da revista «Lapham’s Quarterly», continuaremos a abordar como Santo Agostinho via a diferença entre o mundo da carne e o do espírito, mormente nas suas elucidativas «Confissões».
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