sábado, outubro 22, 2016

(V) «O Evangelho» de Pippo Delbono

As primeiras imagens do filme de Pippo Delbono, agora exibido no DocLisboa, enviam-nos para um campo de refugiados delimitado por arame farpado, onde se volta a colocar a questão: quem se liberta, Jesus ou Barrabás?
Estamos perante  um evangelho apócrifo, que mostra a Humanidade em degenerescência, e da autoria de um descrente apostado em homenagear a própria mãe, que foi fervorosa católica. A tal ponto, que além de frequentar a Igreja, também foi catecista e uma intolerante crítica dos sacerdotes cujo comportamento não merecesse a sua severa aprovação.
Terá sido porque no leito da morte ela lhe terá pedido um espetáculo sobre o Evangelho, para ela uma mensagem de amor, que Pippo Delbono se envolveu neste projeto. Mas, na altura questionara-a: “Mãe, como posso levar á cena as palavras de Cristo? Eu não acredito no seu Deus feito de mentiras, medos e punições. Sou budista. Do que vivi da experiência católica só me fica o seu legado intolerante, como quando tive de fazer de Menino Jesus num presépio e me sujeitei à sua vigilância se ia ou não à missa!”
Este «Evangelho» não é, pois, obra que nasça sem contradições. Trata da viagem de um homem sem defesas, sem um objetivo, que para preencher um profundo vazio, vai-se voluntariar num campo de refugiados. Conhece assim pessoas muito traumatizadas, que viveram experiências extremas, mas também com uma enorme vontade em sobreviverem. São, por um lado, guerreiros fortes como o mármore, mas também frágeis como a porcelana.
Rodado no campo de refugiados de Asti, teve previamente, como preparação, uma estadia de Delbono para aí sentir a realidade sobre a qual pretendia filmar.
Olhado inicialmente com desconfiança, não tardou a merecer a empatia dos internados, que se dispuseram a servir-lhe de Cristos já incapazes de andar sobre as águas, porque nelas o mais certo é afundarem-se. Como o nigeriano Nosa Ugiagbe, que acabou por ser repatriado apesar dos esforços de Delbono para que fosse admitido em Itália.  Ou outras histórias de pungente atualidade: o afegão Zakria Safri, por exemplo, que conta o longo périplo desde as bombas quotidianas de Cabul até ali.
O projeto de Delbono consistiu em olhar para essas histórias através do filtro da beleza apesar de todas elas conterem dor, luta, fragilidade, determinação e desejo de liberdade. É que se nós, ocidentais, tendemos a perder a esperança, estes desvalidos ainda a sonham como única solução para sobreviverem. 

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