sexta-feira, maio 31, 2019

(DL) Lendo Susan Sontag, Olivier Rolin e José Gomes Ferreira


1. Mais vale estar errado com eles do que certo com os outros. Encontro esta frase num conto de Susan Sontag - «Velhas Queixas Revisitadas» - em que está em questão a vontade de sair da organização a que estavam vinculados todos quantos conhecia, desde o marido à própria mãe. Porquê, não o explica, mas a intenção vai sendo sempre adiada, porque aquela constatação, formulada quase no início, faz todo o sentido. Por muito que a «organização» tenha errado muitas vezes, conotando-se com práticas, que nunca deveriam ter sido as suas, tem por si a legitimidade de encarnar um corpo teórico de explicação da História e de como ela poderá evoluir, sem equiparação possível com qualquer outro concorrente.
Há perigos em pertencer-lhe, porque a repressão dos governos atiça-se raivosamente contra ela e os seus membros, quando a máscara democrática cai e o sistema de exploração do homem pelo homem adota as vestes da tirania. Mas há uma manifesta superioridade moral em quem consegue interpretar os factos, dar-lhes a substância de decorrerem de causas precisas e suscitarem consequências previsíveis, adotando, momento a momento, a melhor estratégia para apressar um futuro, que sempre tarda.
2. Antipatizo com os fanáticos de um credo que, julgando-se iluminados por uma outra «verdade»,, passam a dizer cobras e lagartos de quanto terão piamente acreditado. Essa transição de um extremo para outro elucida, sobretudo, sobre o carácter (ou a falta dele!) de quem é capaz de trajetos tão lineares entre um ponto bastante afastado de um eixo e o seu exato contrário.
Durão Barroso é o exemplo mais odioso desse tipo de santanário, ora conseguindo ultrapassar todos os maoístas pela esquerda, ora tornando-se tão devoto do capitalismo selvagem, que se tornou no rosto de uma das suas mais odiosas instituições.
Olivier Rolin assemelha-se ao mordomo da Cimeira dos Açores, porque também ele foi um maoísta radical e recorreu ao mesmo tipo de maniqueísmo para escrever uma obra abertamente anti estalinista. Em «O Meteorologista» ele aborda o martírio de Alexei Feodossevitch, o responsável máximo da instituição soviética dedicada à investigação das massas de ar e das correntes marítimas para obter melhor rigor nas previsões do tempo e que acabou fuzilado algures na Sibéria durante o Grande Terror de 1937 e 1938.
Embora tenha a honestidade de reconhecer que a vítima do desvio estalinista sempre manifestou confiança no Partido Bolchevique e no seu projeto de transformação política e social, entendendo a sua situação como um trágico erro a ser esclarecido, Rolin oculta aquilo que, eu próprio, tive ocasião de constatar durante algumas viagens à URSS antes de Gorbatchev a ter conduzido à absurda implosão: que Estaline continuava a ser idolatrado por muitos cidadãos russos e ucranianos nos anos 70, quando Brejnev era odiado por não se revelar suficientemente competente para dar continuidade às expetativas abertas pelo regime nas décadas anteriores.  Tenho bem presente uma discussão em Tuapse em que dois interlocutores afirmavam sem pruridos que  Lenine good! Estaline good! Brejnev niet!
Reduzir a história soviética aos milhões de mortos nesse período trágico da sua existência - com muitos dos algozes a acabarem por conhecer o destino por eles decididos em relação às suas vítimas! - é dar provas de uma grande desonestidade intelectual. Porque, por outro lado, a URSS soube industrializar-se e antecipar-se aos EUA nos primeiros anos da conquista espacial. E esse foi um lado epopeico, que importa assinalar.
Hoje pode concluir-se que o estalinismo foi a implementação perversa de um projeto ideológico, que continua a ser tão pertinente quanto na altura em que Marx e Engels lhe definiram o conhecido Manifesto, muito embora se reconheça, que nunca as circunstâncias sociais, nem o estado de desenvolvimento dos meios de produção, permitiram que a sua concretização tivesse hipóteses de ser bem sucedida. Isso não impede que volte à ordem do dia, quando o esfarrapado capitalismo conhecer o seu definitivo estertor.
3. No primeiro volume do seu «A Memória das Palavras», José Gomes Ferreira confessa o estado de alma em que se encontrava, quando embarcou para a Noruega em 1925 para aí exercer função de cônsul em Trondheim: a pior solidão é a que me espera agora, a de ter de esconder a minha verdadeira personalidade. Ai de mim se não conseguir aparentar a banalidade altiva dos medíocres! Tomar-me-ão por parvo! Ele não suspeitava o quanto o breve interregno na Escandinávia contribuiria para afinar o recurso das palavras e das suas interligações de forma a conferirem-lhe uma identidade poética original.
O que a frase do escritor revela é algo de semelhante ao que Sontag constatava no seu conto: quem detém o conhecimento necessário para olhar globalmente para a realidade e adivinhar-lhe os trilhos para que se torne mais benigna para a enorme maioria dos humilhados e ofendidos, padece o risco da solidão dos que a olham de um patamar donde está excluída a grande generalidade dos seus potenciais convivas. Que se detêm quase sempre nas árvores, que veem à frente do nariz e ignoram o que se passa no conjunto da floresta...

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