quinta-feira, maio 16, 2019

(DL) Exercícios de memória


Talvez porque a idade direciona-me mais para o passado do que para o futuro ando num ciclo memorialista. N’«A Memória das Palavras» o poeta José Gomes Ferreira lembra o fascínio com que, pelos oito anos, descobriu virtualidades até então insuspeitadas nas palavras. Elas que julgava servirem para receber ralhetes, servirem de insultos entre quem se indispunha na rua ou revestirem as ciciadas coscuvilhices sobre as vizinhas, descobriu-as capazes de rimarem e tecerem outras sonoridades entre si, justificativas de ganhar a ousadia de tornar-se poeta.
Noutro livro, que ando a ler - «Histórias» -, a escritora Susan Sontag lembra o verão dos catorze anos quando o amigo Merrill meteu-lhe na cabeça a possibilidade de visitarem Thomas Mann, que vivia nas proximidades.
Ela lera «A Montanha Mágica» e ficara rendida ao que considerara um imponente monumento literário. Incomodava-a, pois, a possibilidade de conferir carnalidade a quem quase divinizara. Teimoso, Merrill conseguiu que o intelectual os recebesse para um chá num domingo á tarde. E assim aconteceu!
Susan sentiu dificuldade em manter a serenidade num momento de vida destinado a nunca mais ser esquecido. Merrill foi quem melhor se comportou ao alimentar a conversa com quem andava a escrever «Doutor Fausto» e aproveitava a presença dos dois jovens admiradores para pensar em voz alta no que o motivava.
Muitos anos depois, José Gomes Ferreira e Susan Sontag confessavam um especial carinho por esses que tinham sido, e em quem adivinhavam ingénuas condutas...

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