domingo, maio 19, 2019

(DIM) «Manhattan» de Woody Allen (1979)


Há quarenta anos, «Manhattan» foi o filme que nos deu a ver Nova Iorque na ambiência e nos enquadramentos porventura imaginados por George Gershwin para compor a sua «Rhapsody in Blue» em 1924. E a cidade nunca se apresentou tão bela como nesta obra de Woody Allen, que Gordon Willis fotografou a preto-e-branco em formato Scope.
Na cena de abertura temos Isaac Davis na tentativa de iniciar um romance sobre a cidade: “Capítulo Um: ele adorava Nova Iorque, mesmo que Nova Iorque metaforizasse o declínio da cultura contemporânea. Era duro sobreviver numa sociedade insensibilizada pela droga, pela música estridente, pela televisão, pelos crimes, pela porcaria”. (Demasiado agressivo. Devo esforçar-me por o não ser.) “Capítulo Um: ele era tão duro e romântico quanto a cidade, que adorava. Por trás dos óculos escuros escondia-se a potência sexual de um grande felino.” (Adoro isto!) “Nova Iorque era e seria sempre a sua cidade.”
Perante a cidade monumental dos arranha-céus e das pontes maciças, as personagens sentem-se ínfimas. Há a consciência da insignificância das nossas forças perante outras, incomensuravelmente superiores.
«Manhattan» vê os personagens remeterem-se a um registo intimista, que tem por referentes os modelos europeus dos dramas burgueses, ostensivamente opostos aos americanos, baseados na ação. Todos procuram contrariar as contingências a começar pelo protagonista, esse Isaac Davis, que assume contar com o apoio de Groucho Marx, do 2º andamento da Sinfonia Júpiter ou do «Potato Head Blues» de Louis Armstrong. Ou ainda de filmes suecos, de «A Educação Sentimental» de Flaubert. E também com Frank Sinatra, Marlon Brando, as geniais maçãs de Cézanne ou o caranguejo de Sun Wo.
Esse Isaac Davis retoma o papel típico do pobre diabo no folclore yiddish, que só mediante a astúcia e o desaforo evita ser amesquinhado, não deixando de se babar perante a presença feminina. Ele teoriza sobre si mesmo, olha-se a agir, sente-se incompreendido, mas também deformado por uma sociedade individualista, que asfixia as aspirações mais genuínas.
Nos filmes de Woody Allen dessa época há sempre pensões alimentares a pagar às ex-esposas, psicanalistas a consultar, porque está omnipresente o tal percurso imparável para a Morte de que Heidegger falava.
O Amor tende a dissociar-se do confortável modelo burguês: ama-se de forma reflexiva, à beira das lágrimas. Porque anseia-se a magia, a fusão, que comportam, infelizmente, o destrutivo egoísmo.
É em nome desse sentimento, que Isaac se irá aproximar da juvenil Tracy, enquanto o melhor amigo, Yale, arrisca o adultério com Mary, uma jornalista neurótica.
Isaac não se atreverá a amar Tracy por ser demasiado jovem, Yale enleia-se nas mentiras cobardes da sua tentação e Mary oscila entre os dois, ora escolhendo um, ora outro. Como resultado todos se desiludem.
Os diálogos são superlativos, mesmo que as conversas surjam rápidas de mais, com os propósitos de uns e outros a sobreporem-se de forma a quase não se ouvirem.
Na relação com Tracy, Isaac diz-lhe: Tu és a resposta de Deus a Job. Deus ter-te-ia dito: “faço coisas horríveis, mas também sou capaz de fazer o seu contrário”. A relação entre os dois é a mais aprofundada e, por isso mesmo, a câmara aproxima-se dos rostos, fazendo-os crescer em grandes planos, que nunca os com Yale ou Mary se equivalem. Na ingenuidade dos seus 17 anos, Tracy diz ao breve amante: Nem todos estão corrompidos (...) tens de acreditar nas pessoas”. Mesmo tratando-se de uma relação sem futuro, Woody Allen demonstra ser ela a que comportaria o mais sugestivo potencial de salvação.
E o milagre de «Manhattan» é o de, apesar de complexas, ter personagens divertidas na forma como se descobrem e revelam.

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