terça-feira, janeiro 09, 2018

(DL) «A Filha de Agamémnon» de Ismail Kadaré

Foi há muitos anos que conheci a prosa de Ismail Kadaré. Na época a Albânia de Enver Hoxha constituía o farol antirrevisionista onde, supostamente, se aplicava o comunismo na sua versão mais «pura», Criado e publicado em tal contexto - em 1963 - «O General do Exército Morto» constituía uma obra-prima reconhecida como tal, mesmo por quem não professava as ideias implementadas naquela região incrustada entre a Jugoslávia de Tito e a Grécia onde Churchill promovera tenebrosa caça aos comunistas logo após a rendição nazi.
Foi também por essa época que o escritor foi tido como uma das mais altas figuras do regime, na qualidade de deputado. Mas já nessa altura nele se criara uma clivagem relativamente a essa realidade onde parecia tão integrado. E «A Filha de Agamémnon», escrito em 1985, justifica as razões, que o terão levado a exilar-se em França ainda antes da forma fragorosa como a herança de Hoxha não resistiu à sua morte.
A história é sobre um narrador, que não se conforma com a perda da amante, Susana, filha de um dos principais dirigentes do país, espécie de Agamemnon decidido a não permitir nenhum entrave à carreira política em ascensão. Existe uma relação óbvia com o relato do livro de Robert Graves, então objeto da leitura desse jovem intelectual, e no qual se contava como, na Antiguidade Clássica, o chefe grego não hesitara em mandar sacrificar a filha Ifigénia na Áulida para que os deuses lhe dessem em troca os ventos favoráveis à viagem dos barcos gregos até Tróia, objeto da sua vontade de vingança e de conquista. Seria aceitável que Susana sacrificasse o amor para que o pai se visse cada vez mais próximo do líder?
Mas, para sua própria surpresa, o narrador também se vira obsequiado com o convite para assistir da tribuna ao desfile do Primeiro de Maio. Ora não era conhecida a sua irreverente contestação a muitos dos mais gravosos aspetos da governação? A que se deveria tal privilégio, que suscitava tanta inveja nos amigos e familiares com que se cruzava no trajeto para alcançar o seu lugar?
O desconforto consigo próprio é evidente: o que pensariam dele os que o olham com desconfiança? Que denunciara uns quantos conhecidos, apodando-os de inimigos do regime?  “Vindos de todos os lados, incidiam sobre nós olhares desconfiados, furtivos, nos quais se confundiam a inveja, a admiração, a amargura, dando origem a uma espécie de sorriso que poderíamos igualmente designar por anti sorriso.” (pág. 58)
Dada a facilidade com que se subia na hierarquia e logo dela se era derrubado sob acusações quantas vezes absurdas, ele questiona-se  sobre qual a melhor atitude para salvaguardar a pele: “Era impossível descortinar o que seria preferível: encolhermo-nos ou exibirmo-nos, ser uma personagem pública ou um cidadão comum, pertencer ao Partido ou não.” (pág. 84)
Ao regressar a casa depois da festa inquieta-o uma hipótese ainda mais perturbadora: será que Susana recebera a ordem para cortar a relação consigo do pai ou do próprio líder? O que estaria Enver Hoxha a congeminar a respeito do seu futuro?
O romance de Kadaré mostra o que terá sido uma trágica tentativa de implementar a utopia comunista num dos mais atrasados países dos Balcãs. Sem as condições adequadas para dar um salto tão drástico na evolução da sua História, o regime imitaria outros congéneres na deriva totalitária sem possibilidade de remissão...

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