quinta-feira, janeiro 18, 2018

(S) Recordar Ella Fitzgerald no ano em que ela faria cem anos

Sobre Ella Fitzgerald costuma-se referenciar o quão milagrosa terá sido a descoberta do seu talento. Porque a jovem tímida de um meio desfavorecido, que tudo tenderia a empurrar para o anonimato, converteu-se na cantora de jazz que, quer os puristas, quer o grande público, apreciaram, ou não fosse de uma surpreendente frescura essa voz inimitável nas seis décadas, que durou o seu percurso artístico.
A infância e a adolescência deram-lhe uma sucessão de experiências difíceis: nascida num dia 25 de abril - o de 1918 - ela deixou Newport News, na Virgínia, quando o pai deu à sola do lar e ela viu-se na contingência de acompanhar a mãe para Yonkers, no Estado de Nova Iorque, onde teve os primeiros contactos com as suas duas paixões - a dança e o canto - na Igreja Metodista Episcopal  de Bethany.
A mãe morre-lhe na adolescência obrigando-a a mudar-se, aos 14 anos, para a casa de uma das tias em Harlem. Aí vive de expedientes até à noite determinante de 21 de novembro de 1934, quando é consagrada com o primeiro prémio de um concurso de canto no mítico Apollo Theatre do seu bairro.
Alertado pela sua bela voz, Chick Webb contrata-a para vocalista da sua orquestra com que ela atua entre 1935 e 1939, quer em espetáculos, quer em gravações de estúdio. Um dia, enquanto ensaiava “You’ll have to Swing it”, Ella Fitzgerald lança-se numa súbita improvisação feita de sílabas e de onomatopeias. Acabava de inventar o scat, que alguns também atribuem como saído da verve de Louis Armstrong.
Os temas, que lhe vão dando crescente notoriedade, sucedem-se: A-Tisket, a-Tasket, a Brown and Yellow Basket”, “I Found my Yellow Basket” ou “My Heart Belongs to Daddy”. Substitui Billie Holiday na orquestra de Teddy Wilson e colabora com conjuntos vocais  como os Savoy Eights ou os Mills Brothers. Se ainda não alcançou a maestria da voz, que revelaria a partir dos anos 40, já são únicas a espontaneidade e a convicção rítmica, que tão enfático elogio suscita na influente revista «Down Beat» em 1937.
Com a morte de Chick Webb, em 1939, toma conta da orquestra e rebatiza-a como Ella Fitzgerald and her Famous Orchestra. A experiência dura três anos e não se revela frutuosa. Por isso opta por projetos individuais, com acompanhamentos de outros grupos de cantores: os Delta Rhythm Boys e os Ink Spots (1942-1943), Four Keys e Louis Jordan (1945).
Inicia também a colaboração com Louis Armstrong, com quem a empatia é imediata, imitando-o de forma irresistível.  Sob a influência do bop explora o scat com uma liberdade criativa sem peias.
Acabada a Segunda Guerra Mundial, passa a ter por empresário Norman Granz, que logo a associa a grandes digressões mundiais  e a leva aos palcos mais significativos: o Carnegie Hall em 1947, o Metropolitan Opera dez anos depois. A produção discográfica torna-se frenética e conta com as colaborações dos mais prestigiados pianistas - Oscar Peterson, Ellis Larkins, Hank Jones, Don Abney, Paul Smith, Lou Levy, Tommy Flanagan, Ray Bryant, Jimmy Jones, Jimmy Rowles – e de outros grandes nomes do jazz: Ray Brown (com quem esteve casada), Dizzy Gillespie, Joe Pass, Barney Kessel, Lester Young, Benny Goodman, Illinois Jacquet, Paul Gonsalvez, Coleman Hawkins ou Roy Eldridge.
Tornaram-se frequentes os convites para atuar com as grandes orquestras de Count Basie ou Duke Ellington. Este compõe para ela o Portrait of Ella Fitzgerald em quatro movimentos com títulos elucidativos : Royal AncestryAll HeartBeyond Category et Total Jazz...
Na publicidade ela era a voz que quebrava o vidro num memorável anúncio publicitário da cassette Memorex. Até ao fim dos anos 70 nunca pára, ganhando sucessivos Grammies, participando em muitos filmes e sendo convidada frequente da Casa Branca. A saúde, porém, irá fazendo-a declinar acabando por se ver amputada das duas pernas em 1993. Acaba por falecer em 15 de junho de 1996 em Beverly Hills, na Califórnia.
Olhando para a sua carreira como um todo nunca nela se constatou o renegar das origens, nem o desprezo por qualquer género musical. Por isso também a ouvimos cantar temas natalícios, de bossa nova ou até mesmo pop music. Os grandes títulos da comédia musical norte-americana (Irving Berlin, Cole Porter, George Gershwin) tiveram nela intérprete sem igual  e no seu cantar nada ressoava da revolta plangente dos blues. Pelo contrário a sua presença irradiava, alegrava e surpreendia com a amplitude da voz até às duas oitavas e meia.  Os amadores apreciavam-lhe a técnica, a plasticidade vocal, a fantasia poética. Mas quem conseguiria resistir à energia e elegância do seu swing, às coloraturas ingénuas do seu timbre, aos improvisos mais imaginativos? Ella Fitzgerald parecia ter encontrado a receita da eterna juventude. 



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