quinta-feira, janeiro 04, 2018

(DIM) «Em Carne Viva» de Pedro Almodovar

O filme sobre que hoje nos debruçaremos foi estreado há vinte anos e trata de coincidências e circularidades.
Coincidências, porque os seus cinco personagens vão-se-encontrando e desencontrando, amando e desamando ao sabor de circunstâncias, que favorecem essa volubilidade nos sentimentos  sendo sempre possível questionar se assim evoluiriam acaso não se tivessem voltado a ver.
Circularidades, porque começa e acaba com um nascimento, muito embora distem um do outro mais de vinte cinco anos. O que faz toda a diferença relativamente ao contexto em que esses dois bebés descobrem o mundo: no primeiro ainda se vive na Espanha franquista, caracterizada pelos  estados de emergência e pelo medo da repressão e pela falta de esperança, enquanto o do final do filme já conta com um país moderno, onde se pode amar, viver e crescer em Liberdade. Há que lembrar quanto ainda estava viva a memória da ditadura na altura em que o filme foi produzido, constituindo a movida madrilena o toque de finados definitivo em relação a uma realidade cinzenta e puritana, que o conluio do regime com a Igreja suscitava.
Poderíamos igualmente referir a definição de quem é culpado, já que Almodovar serviu-se de um romance policial de Ruth Rendell para criar o seu argumento. Quem é culpado pelo tiro, que reduziu o personagem interpretado por Javier Bardem à condição de paraplégico? Quem é o verdadeiro responsável pela meia dúzia de anos de prisão do jovem cujo nascimento víramos nas primeiras cenas do filme? Quem cria as condições para que uma personagem aparentemente secundária, Clara, acabe morta no fim do filme?
Almodovar demonstra que o conceito de responsabilidade pode ser condicionado por razões que atenuam a punição dos seus efeitos.  É a questão da culpa tender a ser vista judicialmente como individual, mas conter em si muito de cumplicidades coletivas.
Num filme muito bem construído, mesmo que bastante diferente do que haviam sido as propostas criativas do realizador até então, há outras questões que valem a pena referenciar por enriquecerem a complexidade da trama: a questão da limitada sexualidade dos deficientes, que inviabilizam, de algum modo a realização conjugal; a exploração do complexo de culpa como forma de se manter alguém afetivamente dependente; a lealdade entre amigos e o quanto ela possa ser posta em causa pela sobrevalorização das pulsões amorosas, etc.
O resultado é uma teia sentimental, que mistura ódios e violência, paixões e vingança e onde, mais do que o quanto se vê, conta o que cada um transporta dentro de si. Porque são incontornáveis as diferenças entre o que parece e o que é.
É também uma história que usa a elipse como figura de estilo frequente para se eximir a uma exagerada explicitação do que se dispõe a revelar.
Na época «Em Carne Viva» foi tão bem recebido pela crítica internacional, que Almodovar viu-se pressionado a mudar-se para Hollywood. Ciente de que ganharia muito dinheiro, mas perderia a alma, deixou-se ficar por Espanha, apenas aceitando o contributo de investidores, que lhe dessam melhores condições para os ulteriores projetos em regime de coprodução. Decisão contrária tiveram Penelope Cruz e Javier Bardem, aqui encontrados nas rampas ascendentes do respetivo percurso artístico e que, no outro lado do Atlântico, se viram entregues a propostas heterogéneas, algumas inegavelmente interessantes, mas a maior parte apenas justificáveis por razões exclusivamente alimentares.

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